O teatro infantil, e já escrevi sobre isso por aqui, é algo absolutamente nebuloso, ao menos para este que vos escreve. Por conta disso tenho tentado, quando possível, acompanhar mais de perto essa arte. Nessas pequenas incursões ao mundo dos espetáculos feitos para crianças procuro reparar em tudo, mas não posso negar que são os espectadores mirins em si que mais tem me chamado a atenção.
É evidente que para um homem acostumado e embrutecido por uma rotina dedicada exclusivamente a espetáculos adultos, tudo ali é, de certa forma, uma novidade. A linguagem, a estética, a atuação; os espetáculos infantis são detentores de segredos próprios e é preciso, além de paixão, muito estudo para dominá-los.
Há, e isso é inegável por mais que doa admiti-lo, uma escassez tremenda em relação a uma dramaturgia contemporânea dedicada exclusivamente a esse tipo de espetáculo. Não que não existam autores e diretores que lutem em defesa do teatro infantil, eles estão sim por aí, no entanto, esses profissionais ainda são massacrados pelo excesso de produções preguiçosas que insistem em reproduzir para as crianças os mesmos espetáculos caça-níqueis de sempre. Quando aproximamos o olhar do teatro que vai às escolas públicas então a coisa desanda mais ainda. Na maioria dos casos, e digo isso por ter trabalhado com teatro em colégios, a direção importa-se simplesmente em colocar um “teatrinho” qualquer para cobrir a necessidade do planejamento pedagógico. Não há, na maioria das vezes, uma pesquisa das peças selecionadas e tão pouco a preocupação em procurar espetáculos que possam ser relacionados com o conteúdo abordado pelas aulas. Teatro infantil nas escolas serve para entreter as crianças e as peças são consideradas como refresco na dura e retrógrada rotina escolar.
Por conta disso, não é de se estranhar que muitas crianças não tenham intimidade alguma com as artes cênicas e, por esse motivo, tenham dificuldade em compreender algumas regras básicas de qualquer espetáculo. Quando extravasam, por exemplo, são prontamente repreendidas por professores ou auxiliares que em alguns casos mais parecem a polícia do jardim da infância, pregando a ordem através da intimidação.
Por sorte a infância é reduto da fantasia e da imaginação, juntamente ao sonho, e essa beleza pueril sempre se sobrepõe à ordem. E é justamente essa capacidade de mergulhar na fantasia, de crer no sonho em detrimento à realidade, que tem me chamado a atenção em algumas sessões de teatro infantil que decidi frequentar, e é sobre isso que escreverei nas linhas que se seguirão.
O cheiro de pipoca toma conta do ar na tarde de sábado. O bosque que ostenta prisões animais para entreter famílias em busca de diversão tem em seu ventre uma pequena multidão forasteira. Eles correm de um lado para o outro em frente ao velho teatro, enquanto aguardam a abertura do espaço. Ao meu lado, um garoto aparentando no máximo sete anos colhe pequenos gravetos enquanto conversa freneticamente com alguns insetos. Perto dali, uma garota fantasiada de princesa ostenta a face maquiada de sorvete de brigadeiro enquanto ensaia alguns passos de dança ao som do chafariz.
A linguagem, a estética, a atuação; os espetáculos infantis são detentores de segredos próprios e é preciso, além de paixão, muito estudo para dominá-los.
O lugar está completamente tomado por essas pequenas criaturas que encantam pelo simples fato de serem absolutamente livres, estejam onde estiverem. Agora, o cheiro de pipoca mistura-se ao cheiro de coco queimado com açúcar. O estardalhaço metálico anuncia que as portas do teatro serão abertas. A euforia é geral. As portas se abrem e uma fumaça densa, branca e perfumada avança lentamente sobre nossos corpos para em seguida se perder pela vastidão verde-oliva do cenário.
A pequenina multidão avança desesperadamente para dentro do recinto, buscando os lugares mais próximos à boca de cena, afinal, a proximidade com os personagens é condição inegociável para o exercício do encanto.
Ali, à nossa frente, um palco absolutamente vazio e apagado parece tomar vida diante daqueles olhos inocentes. É impressionante a capacidade de fantasia que toma conta do local. Uma pena, nitidamente perdida por ali e fruto de um esquecimento do pessoal responsável pela limpeza do local, transforma-se em espada quando o príncipe toma a cena e dá a sua primeira fala. A partir dali, o que se segue é pura magia, e confesso que minha atenção ficou a todo tempo presa às reações daqueles pequeninos e por conta disso seria impossível comentar qualquer coisa a respeito do espetáculo que, confesso, nada tem de novo em relação às peças que assisti quando criança.
O teatro tem por princípio a transformação do mundo que o cerca e por conta disso é preciso sempre, ao se exercitar essa arte, ter preocupação de compreender seu tempo. Apesar disso, quando tratamos de infância, a fantasia se sobrepõe à lógica e, por isso, existe essa falsa impressão de que diante de crianças a mensagem é o menos importante. Insistimos ainda em um teatro infantil que pretende “catequizar” os pequenos, ao invés de dar-lhes asas, infelizmente.
Busco no teatro um delírio que nunca encontrei, ao menos até agora, e que carrega em si a possibilidade do sonho e da beleza que nos são negados diariamente. Um delírio libertador que nos transforme novamente em pequenas criaturas livres, a confeccionar espadas com penas e conversar com pequenos insetos que guardam os segredos do ventre da terra.
Se a arte que escolhi para dedicar os meus dias guarda ainda algum encanto ele está li, naquele palco vazio que guarda todas as possibilidades do mundo. Ele está nos olhos incandescentes de um garoto que entrega seu corpo e sua vontade para salvar o herói que veste capa em cima daquele tablado. Um teatro verdadeiro, pulsante, onde o raciocínio e a análise dão lugar a um sentir sem fim que se espalha feito peste pelo ambiente. Um espetáculo da libertação, onde todos esquecemos nossas regras de condutas e nos entregamos à trama pelo simples fato de que a realidade não dá conta de nossa existência.
No fim da tarde, após o cerrar das cortinas, caminhei pelos descaminhos daquele bosque absolutamente perdido e atormentado. Atormentado pela constatação de que deixei, sem perceber, o olhar da criança ser substituído pelos olhos vermelhos, sem vida e cansados desse adulto que, diante do primeiro sinal, insiste em ver à sua frente apenas um palco vazio quando deveria reconhecer, naquele espaço, a possibilidade de um novo mundo.
A infância perdeu-se pelos cantos da alma e hoje em dia atende apenas pelo nome de saudade. Guerreira, ela se revolta transbordando essa própria alma, escorrendo pela face em forma de lágrimas, talvez em seu último ato, desesperado, na tentativa de limpar a íris desse pobre coitado diante daquele palco que, infelizmente, continua sendo apenas um espaço sem luz, apagado feito a criança que um dia esqueci que fui.
Vez ou outra, somos visitados pelo pássaro do tédio. O seu bater de asas nos aprisiona, maltrata e nos deixa largados diante da vida.