Muitas vezes temos a impressão, em épocas de violência, de que só a força vence a estupidez e a intolerância. Bobagem! É possível vencer o ódio através do afeto, e a prova viva disso está aí, cravada na nova Luz, através da Cia Mungunzá e do seu precioso Teatro de Contêiner.
Aos esquecidos, é preciso fazer uma pequena volta ao passado. Tratamos da famosa e belíssima Estação da Luz, cravada no coração de São Paulo, e de seus arredores onde a Cracolândia fez seu estado eterno de delírio e descaso pelos braços podres de governantes desgovernados. Foi ali que o atual prefeito João Dória coroou seu governo: demolindo casebres com pessoas dentro, declarando uma guerra às drogas em tom de batalha moral, travando uma caçada humana completamente desumana em nome da ordem e do bem-estar social de famílias que vivem do outro lado da vida; aquele lado que desconhece o que é a tristeza e a fome.
Ali, numa São Paulo ajoelhada diante da especulação imobiliária em detrimento do homem, também nasceu uma fagulha de humanidade: um teatro! O Teatro de Contêiner foi inaugurado pela Cia Mungunzá em março deste ano, com a apresentação de seu maior sucesso: Luis Antonio-Gabriela. A ótima peça trata da história de um travesti de meia idade, famoso oceano a fora, sob o reflexo da violência familiar e da ditadura militar. Com argumento do grande Nelson Baskerville e intervenção dramatúrgica de Verônica Gentilin, a belíssima peça é um incômodo na vida de uma cidade, e não seria exagero dizer um país, que torna-se cada vez mais intolerante e ignorante.
Em um ambiente completamente desprovido de beleza, ao menos diante do primeiro olhar, a Cia Mungunzá conseguiu cravar no coração do Brasil uma forma de encanto diante do caos. De lá para cá, o espaço se consolidou enquanto foco de resistência, e o esforço sobre-humano dessa trupe foi coroado com a indicação ao mais importante prêmio de teatro da país, no quesito inovação, ao lado da ótima Mundana Companhia: o Prêmio Shell.
Em um ambiente completamente desprovido de beleza, ao menos diante do primeiro olhar, a Cia Mungunzá conseguiu cravar no coração do Brasil uma forma de encanto diante do caos.
O prêmio destaca a companhia por conta do “uso arquitetônico inédito voltado para o teatro, inserido em região degradada do Centro de São Paulo”. Sim, a Mungunzá deu vida nova à Cracolândia, com a benção de Eros, num ambiente onde há tempos Tânatos dá as cartas.
Com uma estrutura móvel, moderna pela possibilidade de despejo perene por parte da prefeitura, a companhia decidiu travar uma batalha em nome da beleza e da tolerância, uma batalha que parecia perdida e que hoje ressurge coroada pela própria elite da cidade que se envergonha do cartão postal trucidado. Uma luta em defesa da liberdade!
O panorama político do país assusta: um presidente bandido promove a desgraça em solo brasileiro. Sabemos que diante desse absurdo é difícil carregar o sorriso no rosto, no entanto, é possível encontrar no horizonte pequenas possibilidades de delírio. O espaço criado na base da unha pela Cia Mungunzá é desses solos férteis de possibilidades. Através da coragem e da persistência da trupe podemos acreditar na reconstrução sistemática do afeto, que sempre vence aqueles homens decrépitos que sempre dizem não.
O Teatro do Contêiner é também o teatro da esperança: a prova de que o amor pode, e deve, vencer a ganância e a estupidez do ser humano. Que o Prêmio Shell coroe, seja através da Mundana ou da Mungunzá, a possibilidade do brasileiro redescobrir aquilo que perdeu pelo caminho: um país onde seja possível ao menos sorrir diante do horror.
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