Desde que o palco é palco, e de quando o primeiro homem de cena declamou aos ares a sua arte, o teatro é motivo de discussões e, muitas vezes, de brigas afetadíssimas. Sim, essa arte mexe com os nervos, e trejeitos, daqueles que se dispõe a compreende-la. Ninguém foge a essa estatística. Em todo lugar pra onde olhamos existe sempre a dita “turma do teatro”.
Certa vez, quando ainda um estudante, lembro do amigo, ele mesmo um membro da turma, dizendo a respeito do grupinho à nossa frente: “andam em bando, munidos de livros e xerox, e respondem Brecht a cada bom dia que recebem”. É verdade que a chacota do camarada é nascida do exagero, e que na verdade nós também éramos esse bando do qual ele falava, mas a turma do teatro realmente existia, e até hoje existe, no entanto, não da mesma maneira.
Há algum tempo é possível perceber uma mudança brusca nas rodas e conversas em torno de garrafas e teatros que acontecem noite adentro. É fato que os artistas ainda são ligeiramente boêmios, e que o bar ainda é o lugar escolhido para a celebração após uma peça, uma exposição ou a exibição de um filme; a única diferença talvez sejam os acepipes, hoje em dia vegetarianos e a preferência pelos “tabacos confeccionáveis”, muitos deles feitos de tabaco orgânico, de resto a coisa é igual: muita cerveja e papo furado, no melhor dos sentidos. O que mudou, em essência, foi a própria turma.
A velha turma ainda está por ali, de sorriso nos lábios que seguram firmemente o cigarro de filtro vermelho. Ainda está ali, lembrando do assassinato de Garcia Lorca de braços erguidos e dentes rangendo. A velha turma ainda brinda em homenagem ao Deus grego, grifa o texto com marcadores amarelos e sonha em rodar o país fazendo teatro. A diferença, portanto, não está nos tablets que substituíram os calhamaços de papel na mãos dos atores, apesar deste que vos escreve ainda estranhar o fato. Também não está na possibilidade proporcionada pelas tais “lives“, que transmitem peças em tempo real pela internet. O teatro devora seu próprio tempo e a turma segue com ele. Mas afinal, qual a diferença? Os meios!
Uma breve história: anos atrás, eu e uma amiga escrevemos e ensaiamos um espetáculo. Durante meses pesquisamos e desenvolvemos, em conjunto, todo o trabalho. Começamos a ensaiar enquanto pensávamos o cenário e corríamos atrás de patrocínio, como nos velhos tempos. A ideia era simples: conseguir data em algum teatro, sem pagar aluguel da sala e sim porcentagem da bilheteria, e dividir o que sobrar. Se sobrasse, evidentemente. Quebrávamos a cabeça para tentar não quebrar o cofre, até que um dos atores nos mostrou uma possibilidade viável e aparentemente justa onde todos ganhavam: os tais editais.
A turma do teatro também mudou, mas não quer dizer que deixaram de ser aquela velha turma de sempre. Afinal, por mais negócio que se faça, o teatro vai ser sempre frio na barriga.
Animados, fomos em diversas empresas especializadas na coisa e, sem citar nomes, a proposta menos indecorosa foi a seguinte: “montamos o projeto, capitamos o recurso e fazemos a prestação de contas e dividimos na proporção de 60/40% o valor da coisa”. Adivinha quem ficaria com a menor parte? Nada mais justo, ouvi, afinal, eles fariam todo o trabalho. Compreendi ali que para aqueles homens de número o teatro era uma espécie de mágica que acontece no dia, não dá trabalho e não demanda tempo. Saímos dos lugares arrasados e fizemos a coisa do nosso jeito. Quebramos a cara e o cofre, evidentemente, mas recusamos as correntes.
A história acima, hoje, talvez não se desse dessa maneira. Afinal, é cada vez maior o número de pessoas envolvidas com o teatro que dominam, nos dias atuais, todos os estágios que levam um espetáculo ao palco. É verdade que sempre tivemos que nos virar com tudo; no entanto, é possível perceber que muitos artistas não se submetem mais a abusos desse tipo pelo simples fato de que desenvolvem seus próprios projetos “de cabo a rabo”.
Muitos acham ótimo, compreendem que é preciso ao artista um pensamento empreendedor, por mais que à primeira vista a palavra parece estrangeira no país de Dioniso. Que é preciso autonomia ao artista, e que essa autonomia não reside apenas no plano da criação. Outros criticam, dizem pela noite que, hoje em dia, artistas estão mais preocupados com contrapartidas e justificativas do que com a própria obra, que os empresários dominaram tudo e hoje em dia o verdadeiro teatro está perdido. Nessa batalha da liberdade contra o purismo, o bonde segue e os artistas vão, cada um ao seu modo, se adequando ao mercado e criando seu estilo próprio de trabalhar. É fato que muitas empresas ainda cobram porcentagens exorbitantes, e não é raro ouvir de artistas que o fazem porque tem conluio com notórios patrocinadores. Nada de novo na terra de Vera Cruz!
Passado e presente sempre se esbarram, e são sistematicamente medidos pelos efeitos da realidade: os antigos sonhos foram submetidos a acertos econômicos, as velhas paixões amareladas pela ação do tempo no retrato, a morte apertando o passo no retrovisor imaginário. Tudo muda e muda sempre, exceto o tempo que nos golpeia a cada segundo com seu infernal tic-tac.
Mudamos também nós, nos adaptando ao espaço e ao tempo, nos sufocando em dúvidas e agarrando novos rabos de cometa pra seguir em frente. A turma do teatro também mudou, mas não quer dizer que deixaram de ser aquela velha turma de sempre. Afinal, por mais negócio que se faça, o teatro vai ser sempre frio na barriga, percevejo na espinha e silêncio que ecoa no breu.