A natureza da televisão é atravessada por um formidável paradoxo. Por um lado, ela é cercada de protocolos, de regras, é permeada pelos mais modernos avanços tecnológicos. Permanecemos deslumbrados em frente à televisão para contemplar aquilo que as máquinas conseguem criar (basta lembrar, por exemplo, da perplexidade que tínhamos diante dos efeitos especiais das modernosas aberturas criadas pelo designer Hans Donner em tempos áureos). Por outro lado, a TV se alimenta daquilo que é mais simples, mais elementar: do encontro entre as pessoas, da sutileza da convivência em sociedade. Em outras palavras, a televisão nunca deixa de ser, bem no fundo, mera conversação.
Isso me veio à mente ao assistir ao novo quadro do programa Caldeirão do Huck, estreado no último sábado, intitulado “O próximo passo”. A proposta é simples: busca utilizar o palco de Luciano Huck para promover um encontro entre alguém que perde perdão e a outra pessoa de quem espera ser perdoado. Ou seja, uma temática (o perdão, uma atitude que poucos conseguem exercer plenamente em sua vida) do cotidiano, de raízes ancestrais e, ainda assim, extremamente difícil de ser explicada e, consequentemente, vivenciada. Lidar com o perdão – e falar sobre ele – é algo que simplesmente não pode ser feito se não conseguirmos ir além da compreensão da mente consciente.
O quadro beira o impossível: como falar de perdão em rede nacional?
Por isso, o quadro beira o impossível: como falar de perdão em rede nacional? Como, em breves 30 minutos, trazer ao grande público a possibilidade de adentrar na complexa trama afetiva de uma família e oferecer esse emaranhado de sentimentos de forma acessível? O caminho mais comum seria despencar ao melodramático, ao excessivo, típico dos programas populares que buscam arrancar lágrimas de forma simplória. Nesse sentido, o quadro “O próximo passo” se destaca pela sobriedade no tratamento do tema.
Em suma, o quadro se propõe a funcionar assim: alguém se inscreve porque busca o perdão de algum ente que magoou. É colocado numa sala toda branca, com ares futuristas, onde fica isolado e tem uma interação com Luciano Huck. A outra pessoa também é trazida a uma sala igual, espelhada à outra – ambas as salas são separadas apenas por uma parede móvel, que será retirada na hora em que ambos (ofensor e ofendido) se confrontam. Há ainda alguns botões na parede, com opções aos dois participantes: eles podem apertar um botão para sair da sala, podem ligar a alguém para pedir ajuda, podem acionar novamente a parede para se isolarem. Fora dessas salas, Luciano Huck assiste a tudo, em uma espécie de panóptico, acompanhado por uma psicóloga e uma advogada, ambas especialistas em mediações.
Como talvez tenha notado o leitor, há uma superprodução que, no fundo, é totalmente desnecessária, já que o âmago do quadro está na busca de algo extremamente essencial, que é a natureza da afetividade e das intrincadas interações humanas. Não podemos esquecer que este é um quadro do Caldeirão do Huck, atração da Globo, cujo chamado padrão de qualidade justifica produções megalomaníacas. A mesma coisa acontece em outro quadro do programa, o “Voltando ao Passado”, que realiza uma árdua reconstituição de cenário para recriar espaços das infâncias dos famosos. No fim, a matéria-prima do quadro é a nostalgia e a emoção que ela causa – mas dá para dizer que a exibição do “poderio” da Globo faz parte do apelo.
No primeiro episódio de “O próximo passo”, o participante foi o gaúcho Alex Sander, um pai que pede perdão ao filho que não ajudou a criar. Trazido à sala de Luciano Huck, ele passa por uma entrevista com o apresentador e expõe, sem grandes excessos, nem lágrimas copiosas, aquilo que busca: conciliar-se com o filho e, em alguma medida, perdoar o pai. Lúcido, ele expressa a consciência de que repetiu com o filho o padrão daquilo que seu pai fez com ele. De certa forma, pedir perdão ao filho é uma forma de tentar libertá-lo de um ciclo de mágoas que se estende por várias gerações. Poderíamos dizer, assim, que seu relato subentende uma série de conceitos da psicologia – como do ramo da psicologia sistêmica – trazidos de forma bastante didática ao espectador médio.
A breve entrevista com o pai, com o filho, e o diálogo entre eles são momentos ricos e que agregam uma emoção crível, pois sóbria, condizente com as miudezas da nossa vida cotidiana. É claro que o perdão não acontece ali, em rede nacional, e parece-me que essa é outra qualidade do quadro: não procura forçar a impressão de um sentimento que não está ali.
No fim das contas, todo o “circo” armado pela produção do programa – a sala tecnológica, as “regras” do quadro, as especialistas convidadas – fica menor frente ao caráter humano do quadro e à beleza do reencontro dos dois. Num momento histórico em que o dissenso é a regra, em que todos se sentem magoados e ninguém se reconhece como causador de danos ao outro (e pouquíssimos estão propensos a dar um novo passo), é bem oportuno que a TV aberta fale sobre perdão.