Um confuso imbróglio reverberou muito nas redes sociais na última semana. A Rede Globo, detentora dos direitos de transmissão do Campeonato Carioca, anunciou que deixará de exibir os jogos este ano (o campeonato continua acontecendo, mesmo com as restrições da pandemia). O motivo deste rompimento foi uma disputa entre a retransmissora e o Flamengo, que exibiu o jogo contra o Boavista em seus canais na internet.
Sob medida judicial, a Globo tentou evitar a transmissão do jogo pela FlaTV, mas não conseguiu. O time carioca se baseava em uma brecha aberta pela Medida Provisória de Bolsonaro, que modifica os direitos de transmissão do esporte. Baseando-se no argumento de que o contrato da Globo com o campeonato foi constituído antes da MP, a emissora tentou impedir a transmissão, mas foi malsucedida. Por consequência, a Globo (em uma espécie de revanchismo?) optou por divulgar a não transmissão do resto do campeonato, sinalizando pistas sobre não manter o contrato no ano seguinte.
O caso é importante no que concerne aos mecanismos de funcionamento da TV aberta e nas adequações (ou não) frente às novas mídias com as quais disputa espaço. Será que o futebol é ainda um esporte que se assiste tradicionalmente na televisão – e, afinal, o que configura “estar na televisão”? Diz respeito à “tradição”, à presença de locutores conhecidos, a uma lógica de horário já estabelecida conforme a grade das novelas e do Faustão? E o que significa mudar esse hábito para plataformas de streaming específicas dos clubes para os quais torcemos?
São muitas questões cujas respostas ainda não são possíveis de obter. No entanto, há algumas pistas. Há três anos, episódio semelhante ocorreu aqui no Paraná, quando Athletico e Curitiba uniram-se para lutar pela transmissão online de um Atletiba, ao optar por não vender os direitos de transmissão à RPC, afiliada da Globo. Com números bastante expressivos de audiência digital, o caso se tornou um pequeno marco nas mudanças nessas relações entre times e emissoras, sem grandes notícias a esse respeito deste então.
Para o espectador, será um bom negócio trocar as emissoras por canais específicos dos seus times? Em termos de qualidade jornalística, o que isso pode acarretar?
E aí, três anos depois, em plena quarentena de COVID-19, vemos agora este novo episódio envolvendo o Flamengo e a Globo. No entanto, as semelhanças entre os dois casos (o paranaense e o carioca) se dão apenas na superfície. No caso do Atletiba, o que víamos era a união de dois times grandes em seu estado em busca de contratos mais justos para os clubes, em prol de benefícios que se estenderiam aos demais, caso obtivessem vitória (os dois times reivindicavam por pagamentos melhores dos direitos de transmissão pela Globo, que haviam sido diminuídos). No caso do Flamengo, o esforço tem um teor mais individualista: busca melhorar o faturamento da própria marca do time, já com grande poder. Aparentemente, há poucos benefícios visados para o esporte como um todo – uma vez que a fim da transmissão da Globo pode prejudicar os clubes pequenos que não se envolveram na disputa.
A quebra desse “monopólio” de transmissão, defendem alguns, pode ajudar alguns times a faturarem mais e, por consequência, obterem mais lucro para melhorar o funcionamento do clube em diversos aspectos. No entanto, por mais maravilhosa que pareça essa promessa, é preciso reconhecer que há algo de utópico, ao menos por enquanto, em imaginar que sair de uma grande emissora é um sinônimo de ganhar mais dinheiro com internet. Em uma análise bastante ponderada, o jornalista Rodrigo Mattos esclarece que estes novos modelos – que começam a refletir no futebol algo que já se vê em outras esferas do entretenimento midiático – precisam partir do pressuposto que os antigos modelos de transmissão em TV aberta ainda têm bastante força. Romper com um modelo velho antes do estabelecimento de um novo, como parece ter provocado o Flamengo, pode ser uma temeridade.
Mas tudo isso diz respeito à ótica do futebol enquanto negócio. Por fim, há outra questão que precisa ser ponderada, e que foi levantada pelo jornalista André Rizek em seu Twitter: para o espectador, será um bom negócio trocar as emissoras por canais específicos dos seus times? Em termos de qualidade jornalística, o que isso pode acarretar? Vale lembrar que, como podemos deduzir logicamente, é bastante provável que os canais dos times não prezem pela isenção – valor diretamente ligado ao nível de competência do jornalismo esportivo.
Nas palavras de André Rizek, permanece uma provocação relevante: “terá público para o jornalismo que busca a isenção, mostrar o contraditório? Ou as pessoas só vão querer saber de defender o clube delas, acima de tudo? Passaremos por uma precarização, uberização da profissão?”. Ou seja, estaremos rumando, também no jornalismo que cobre futebol, a uma abordagem mais próxima da assessoria de imprensa, ou seja, que busca apenas dar luz ao que pega bem e apagando as falhas dos times? Se isso se concretiza, quem perde é o cidadão. Mas aguardemos cenas dos próximos capítulos.