A uma semana do início da Copa do Mundo, já estamos vendo que esse evento – tal como ocorre em todas as suas edições – será absolutamente explorado pelas mídias para os mais múltiplos sentidos. E se há uma coisa que sabemos há bastante tempo é que, se nos interessamos tanto por esporte, isso se dá porque não consumimos exatamente (ou exclusivamente) o esporte quando falamos de futebol.
Basta ligar a TV para analisar apenas os comerciais e ver que discursos diversos estão sendo anexados aos personagens ligados à Copa. Vão desde a retórica de autoajuda provinda do técnico Tite, repetida em diversos anúncios, ao tom de simplicidade e humildade anexado aos craques do time, como Gabriel Jesus. Fato é que o evento esportivo é aproveitado continuamente para vender – seja produtos, seja sentimentos, o que, no fim, dá meio que na mesma – coisas que parecemos dispostos a comprar.
Mas é claro que alguns discursos são mais propensos a serem colados ao futebol do que outros. A narrativa do esporte, por essência, é uma narrativa que pressupõe dificuldades, condições adversas e, por fim, superação. Nós consumimos os mitos esportivos na exata medida em que eles nos passam mensagens de fundo moral. Mesmo quando a história é de um suposto fracasso, como a de Adriano “Imperador”, há ali uma mensagem forte de cura, de confrontar-se com a própria sombra.
Um dos programas a embarcar na onda da Copa e seus discursos morais foi o Caldeirão do Huck, que exibiu no último sábado o quadro “Visitando o passado” com o atacante Neymar, a estrela da seleção brasileira. O quadro, aliás, é perfeitamente elaborado para fazer chorar, como aponta o jornalista Maurício Stycer, a partir da promessa de “humanizar” algum famoso por meio de uma visita a um dos lugares no qual habitou durante a infância.
Basicamente, o quadro, por meio de uma produção primorosa (e evidentemente bastante cara) reconstitui o cômodo (um quarto, uma sala, um quintal) da casa (sempre muito simples) em que um famoso viveu no seu passado. A promessa discursiva é clara: quer mostrar que aquele ídolo ali trazido (entre outros, a reconstituição já envolveu gente como Ivete Sangalo, Chitãozinho e Xororó e o próprio Huck) é, bem lá no fundo, alguém simples, que veio da pobreza e ascendeu rumo a um futuro glorioso. O efeito na celebridade é, obviamente, a comoção e o consequente choro – mostrando que, afinal, ele é “gente como a gente”.
Nada então mais esperado do que trazer ao palco do Caldeirão do Huck a estrela das estrelas do futebol brasileiro, Neymar. No entanto, há um detalhe que causa um certo desconforto durante toda a proposta: Neymar, de fato, é um futebolista dos novos tempos, adaptado ao culto pós-moderno às celebridades. Sua fama foi construída por meio da ideia do direito à diversão, à vida despreocupada – à “ousadia e alegria”, como diz a música do cantor Thiaguinho (amigo de Neymar, inclusive) e que costuma ser associada ao craque. Querendo ou não, Neymar faz circular um discurso conectado à geração dos millenials: a ideia de que é possível suceder na vida sem sacrificar a diversão.
A narrativa do esporte, por essência, é uma narrativa que pressupõe dificuldades, condições adversas e, por fim, superação. Nós consumimos os mitos esportivos na exata medida em que eles nos passam mensagens de fundo moral.
Em resumo, os discursos da humildade, da dificuldade e da superação não são associados ao jogador – que, aliás, já cresceu sob a esfera dos holofotes e recebe bons salários e patrocínios desde muito jovem. Em outras palavras, a ideia da “jornada do herói”– a narrativa de alguém que enfrenta dificuldades muito duras e sai fortalecido – associada a tantos ídolos do futebol (como Pelé, Garrincha, mesmo Adriano) simplesmente parece não colar em Neymar.
Por isso mesmo, o quadro do Caldeirão do Huck parece todo descompassado. O tom da história triste é reiterado o tempo todo por Luciano Huck (que lembra que a mãe de Neymar foi merendeira, o pai foi pedreiro) e Neymar chora (sob o boné da Nike, seu patrocinador, que esconde o seu rosto), mas a comoção é um tanto forçada, parece protocolar. Para nós, espectadores, fica difícil comprar a ideia de que Neymar – criado para ser uma estrela, a ter sempre o mundo aos seus pés – seja de fato alguém que consegue relembrar, com alguma saudade, de como era a vida de quando não era milionário (algo que aconteceu, como já destacamos, bem cedo na sua trajetória).
Para completar o desconforto, todos que compõem o “circo” em torno do Neymar (e, claramente, vivem em torno dos lucros que ele traz, como um belo produto da sociedade midiatizada) causam a mesma sensação: a irmã tem ares de blogueira, e parece pouco à vontade no papel da “família humilde”; os amigos de Neymar, que se intitulam “diretoria” (o que se relaciona em nada com a ideia de humildade pressuposta pelo quadro), são todos celebridades como ele e igualmente conhecidos como bon vivants, pessoas que aproveitam bem os dias de uma forma que a maior parte da população não consegue.
Em tempo: não há qualquer problema que Neymar não se adeque ao padrão “superação” que se espera aos futebolistas. O que incomoda justamente é o tom forçado – e, por que não, moralista – que é empurrado não apenas a ele, mas a todos os personagens da Copa, para que eles “signifiquem” algo que não necessariamente tem a ver com suas experiências. Mas permanece a reflexão: talvez nós, espectadores, já estejamos maduros o suficiente para consumir o futebol por meio de outras narrativas mais complexas e menos organizadas que essas que, meticulosamente, buscam nos comover de uma forma bastante simplória.