Houve um tempo, não muito distante, em que a televisão era constantemente acusada de baixar o nível da discussão pública ao ofertar um produto de muito má qualidade à população mais pobre. Com a difusão da informação por meio das redes digitais, esta crítica foi, em parte, amenizada – costuma se levantar mais em ocasiões eventuais em que algum programa de TV causa danos diretos às pessoas.
Mas não nos enganemos: a “baixaria” ainda está lá. E, para entender por que há ainda tanta programação leviana e sensacionalista, é importante olhar para a gênese. Esta é a proposta do jornalista e crítico de TV Maurício Stycer em O Homem do Sapato Branco: A vida do inventor do mundo cão na televisão brasileira (editora Todavia, 2023), livro reportagem que recupera a história de Jacinto Figueira Júnior, um dos fundadores dos programas de má qualidade, fundados na fusão entre jornalismo e entretenimento, e que até hoje abundam na televisão brasileira.
Para quem não sabe, Jacinto foi uma espécie de precursor nacional dos programas policialescos e assistencialistas. Sua trajetória começa pela TV Cultura (não na TV pública gerido pela Fundação Padre Anchieta, mas em seu embrião, como um canal menor do grupo de Assis Chateaubriand) e chega em outras emissoras, como a Globo, a Band e o SBT (onde viveu sua última incursão televisiva no Aqui Agora). O apresentador se tornou famoso ao criar um “personagem”, o tal Homem do Sapato Branco – referência à indumentária que usava em todas as suas aparições públicas (Jacinto jurava que o sapato branco remetia à credibilidade dos médicos e enfermeiros).
O que vemos, ao longo do livro de Stycer, é o uso de uma metodologia de trabalho bastante semelhante à que empregou para produzir Topa Tudo Por Dinheiro, livro em que recupera a história de Silvio Santos. Trata-se de uma obra que mistura apuração jornalística com pesquisa científica e análise bibliográfica que contextualiza o “Homem do Sapato Branco” na história dos veículos de comunicação brasileiros.
Ou seja, mais do que contar a biografia de Jacinto (cujos dados escassos tiveram que ser “escavados” pelo jornalista), Maurício Stycer está interessado em entender como este personagem se encaixa como uma peça importante para entender a forma pela qual a programação brasileira se desenvolveu e chegou onde está.
As premissas do “jornalismo do sapato branco”
O autor reconhece que, embora Jacinto tenha trazido à TV a essência do chamado “mundo cão” (referência ao polêmico documentário italiano Mondo Cane, de 1962), sua trajetória levanta pontos que merecem ser discutidos e, quem sabe, tenham até hoje algum fundamento.
Vale lembrar que Mondo Cane, dirigido por Gualtiero Jacopetti, Paolo Cavara e Franco Prosperi, é tido por muitos como o marco inaugural do formato shockumentary – gênero cinematográfico que se fundamenta na exposição de cenas fortes e cruas que visam chocar o espectador, na perspectiva de impactá-lo e fazê-lo ver a “vida como ela é”.
Jacinto Figueira Júnior trazia em suas entrevistas o documentário como uma das referências do seu trabalho. E sua argumentação para defender o que fazia na TV (suas reportagens expunham, por exemplo, filmagens de cirurgias, muitas brigas encenadas em palco, exploração de casos policiais e cenas diversas da miséria humana) é que esta seria uma das poucas chances de transformação social para o país. Os pobres só teriam uma chance de melhorar de vida à medida que seus dramas fossem jogados na cara da população e dos poderosos.
Stycer é cirúrgico ao relatar que, nos seus últimos anos de vida, Jacinto Figueira Júnior foi vítima do mesmo sensacionalismo e exploração da miséria, que ajudou a inaugurar.
É claro que esse é um argumento altamente contestável, e que abre espaço para que, até hoje, vários apresentadores e apresentadoras de TV – de Luciano Huck a Luiz Bacci, de Datena a Ratinho – sigam lucrando muito em cima da ideia de que os vulneráveis mais ganham do que perdem com a exposição televisiva.
Outro aspecto interessantíssimo que era levantado por Jacinto Figueira Júnior envolve o conceito de “verdade” na sua produção. Ele usava, quase sempre, o que depois se chamou de dramatização (feita até hoje, por exemplo, no programa Linha Direta), que consiste em contar histórias reais por meio da interpretação de atores. Contudo, nos programas de Jacinto, quase nunca o caráter fake era explicitado ao espectador, gerando um tipo de produto essencialmente problemático.
Outro pioneirismo de Jacinto se deu no fato de ele ter tentado surfar na popularidade televisiva para se inserir na política – o que continuamos testemunhando, embora boa parte dessa visibilidade envolva hoje as redes sociais. O Homem do Sapato Branco se tornou um deputado estadual medíocre, mas que possivelmente foi perseguido e injustiçado com a cassação de seu mandato por uma canetada, no auge do AI-5 – fato até hoje obscuro e que Maurício Stycer analisa ao levantar documentos inéditos.
Ascensão e queda de Jacinto
Sua carreira oscilante na TV trouxe a Jacinto passagens intermitentes por programas dos anos 1960 até os anos 1990. O retrato feito por O Homem do Sapato Branco é muito perspicaz no sentido de que nos faz acompanhar como as mudanças históricas no próprio jornalismo fizeram com que o apresentador passasse de estrela (sobretudo pela grande audiência que trazia às emissoras) a um símbolo do que havia de mais ultrapassado.
Um dos momentos mais interessantes no livro reportagem de Maurício Stycer é quando relata os bastidores do Aqui Agora, programa importante na história do SBT e que hoje é visto como um exemplo fundamental do jornalismo popularesco de má qualidade.
Jacinto foi “resgatado” por Silvio Santos para fazer parte do programa. Mas, chegando lá, teve que lidar com o choque com a nova geração de jornalistas, formada por gente como Cezar Tralli e Roberto Cabrini. O tipo de conteúdo que ele produzia, que muitas vezes se aproximava mais da ficção do que do jornalismo, passou a ser contestado pelos colegas.
A solução foi enquadrar Jacinto como mais um personagem, o “cronista do absurdo”, expressão que esclarecia que seu trabalho não tinha exatamente compromisso com a verdade, e que até flertava com o humor. Jacinto se ofendeu, mas aceitou. Contudo, já ficava claro então que aquilo que ele fazia já não tinha mais espaço.
Maurício Stycer é cirúrgico ao relatar que, nos seus últimos anos de vida, com dificuldades financeiras e problemas de saúde, Jacinto Figueira Júnior foi vítima do mesmo sensacionalismo e exploração da miséria, que ajudou a inaugurar.
Sua história encerra de maneira melancólica, mas seu legado (associado a problemas que até hoje reverberam, mas ainda assim um legado) continua vivo. A obra de Stycer é digna de muitos méritos por fazer justiça à vida e à obra de Jacinto Figueira Júnior e por recuperar um trecho muito importante da história da televisão brasileira.
O HOMEM DO SAPATO BRANCO | Maurício Stycer
Editora: Todavia;
Tamanho: 264 págs.;
Lançamento: Junho, 2023.
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