É difícil imaginar um programa parecido com Provocações. Isto porque o programa de entrevistas encabeçado pelo ator e diretor Antônio Abujamra entre os anos 2000 e 2015 (acabou com a morte do apresentador) era tão particular que fugia, inclusive, de sua classificação como programa de entrevistas. Provocações poderia ser mais entendido como um formato híbrido, entre a conversa e o monólogo, o jornalismo e o teatro, numa estrutura simples (basicamente, Abujamra, em superclose, e um entrevistado, num cenário lúgubre), sem distrações, sem a preocupação de trazer entradas fáceis a um espectador desavisado. Era, em outras palavras, uma espécie de anti-TV: um “local” na TV Cultura em que alguém estaria desconfortável, sendo confrontado por um grande intelectual, um homem que era uma biblioteca, forçado a responder questões duras justamente por serem extremamente simples (Abu sempre encerrava perguntando ao seu entrevistado várias vezes: o que é a vida?).
Provocações então entrou no histórico da televisão como um programa intocável e, mais que isso, inimaginável nas mãos de outras pessoas, pois Provocações era o próprio Abujamra. Por isso houve um espanto geral quando a TV Cultura anunciou a volta do programa em 2019 – agora reconfigurado pelas premissas de visibilidade das redes digitais, e então intitulado #Provocações – tendo como apresentador Marcelo Tas. O centro das reações negativas se resumiu em tweet que circulou, que dizia: pior que morrer é ter seu cadáver violado.
Portanto, ao aceitar o desafio de capitanear o “novo” #Provocações, Marcelo Tas se metia em uma missão impossível: o de mexer com um “cadáver inviolável”, prometer trazer à vida novamente um programa que todos desejávamos que permanecesse intocado em nosso imaginário. Deste modo, diria que é fácil criticá-lo. E talvez a principal razão é que, no programa, Tas parece um simulacro de Abujamra, só que menos espontâneo. Se Abu parecia um velho sábio que empurrava seus entrevistados na parede apenas por sua mera presença, Tas parece tentar encaixar as referências intelectualizadas com o humor que lhe caracterizou ao longo da carreira. Em cena, mistura filósofos como Rousseau a “filósofos” como Valeska Popozuda e Emilio Surita.
Ao aceitar o desafio de capitanear o “novo” #Provocações, Marcelo Tas se metia em uma missão impossível: o de mexer com um “cadáver inviolável”, prometer trazer à vida novamente um programa que todos desejávamos que permanecesse intocado em nosso imaginário.
Então qualquer crítica sobre #Provocações deve então assumir, de pronto, que Marcelo Tas não é Antônio Abujamra – e nem deveria tentar ser. Mas o Marcelo Tas da TV Cultura também não quer ser o Marcelo Tas cool do CQC, mas quer relembrar a memória cult do Professor Tibúrcio, personagem que incorporou no programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, da própria TV Cultura (Tibúrcio, inclusive, é citado no programa de estreia). Ou seja, em alguma medida, o novo #Provocações busca recuperar a Tas uma reputação algo desgastada na era das redes sociais – sua onipresença na televisão, que chegou ao ápice com o sucesso estrondoso do CQC, acabou por “queimar”, em parte, um capital que ele construiu por anos.
Nos dois programas já exibidos de #Provocações, explicita-se que o programa está conectado a outras lógicas regidas pelo tempo. No programa de estreia, em que o entrevistado é Ciro Gomes, Tas é exibido num monólogo com a câmera em que assume o campo minado em que está se enfiando. Tweets de pessoas o criticando são exibidos na tela. Ele, então, emenda: “mas com haters eu já estou acostumado”.
Volta-se então ao cenário obscuro, que remete ao que era utilizado por Antônio Abujamra, mas com algumas diferenças. A mesa, por exemplo, tem formato de hashtag, e Tas se remete continuamente à internet. O entrevistado, aliás, foi escolhido via uma eleição digital, e Ciro Gomes – entendido como “pavio curto” e, por isso mesmo, um provocador – é então recepcionado para falar sobre política e vida pessoal. A intenção na entrevista evidencia um desejo pela polêmica, de uma forma que beira o forçado. Diversas vezes, Tas menciona, por exemplo, que algum partido irá se irritar por alguma resposta dada por Ciro – quase como implorando por alguma repercussão para além da TV. Soa um pouco over, e contrasta com a postura relaxada de Ciro Gomes durante a entrevista (ele não parece, de fato, provocado).
Já no segundo programa, com um entrevistado menos “encorpado”, Tas se sai melhor. Sendo ele mesmo um provocador, o comediante Danilo Gentili parece inadequado ao espaço em que se encontra, e visivelmente está tenso. Marcelo Tas, ainda que gentil, não perde a deixa do confronto. Em certo momento, por exemplo, exibe um tweet em que Gentili faz uma piada com Paulo Freire e pergunta o que o comediante sabe sobre o educador. Claramente pego de surpresa, Gentili se enrola numa resposta e acaba dizendo que “eu não gosto das pessoas que o defendem”.
Ainda é cedo para saber como será a nova temporada de #Provocações, e talvez seja injusto colocar uma expectativa de que faça jus ao legado de Antônio Abujamra. No entanto, é possível esperar que Marcelo Tas tente percorrer estradas semelhantes às desbravadas por Abu: o de fazer um programa denso, avesso às convenções do entretenimento, capaz de garimpar boas respostas de seus entrevistados, independente de sua estatura.