Esta semana, viralizou nas redes digitais um meme que sedimentava aquilo que todo mundo já sabia: a admiração potencialmente consensual dos brasileiros em relação ao médico Drauzio Varella, oncologista conhecido da população em razão de seus livros (o mais famoso dele, Estação Carandiru, narra seus anos de experiência como médico voluntário no hoje desativado presídio Carandiru) e por suas eventuais reportagens em programas como o Fantástico. Muitos chamaram o doutor de “o maior brasileiro vivo” e houve até quem defendeu que Drauzio se candidatasse à presidência (a reação do médico, conforme esperado, foi sóbria: disse que era tudo uma grande bobagem e que essa idealização de “salvadores da pátria” é, justamente, o problema do Brasil).
Toda essa discussão ocorreu por causa de uma longa matéria de Drauzio Varella (com 14 minutos), veiculada no Fantástico no dia 29 de fevereiro, que repercutiu em larga escala e emocionou a audiência. Nela, o médico retrata a realidade de mulheres trans em presídios pelo Brasil. Uma reportagem sofisticada, com ares de documentário, em que conhecemos bons exemplos de presas transexuais a quem foi ofertada dignidade (para muitas, pela primeira vez em suas vidas) exatamente quando foram parar no lugar reservado ao que se entende ser a escória da sociedade (veja a reportagem completa aqui).
Mesmo sendo médico, Drauzio desenvolve também um papel de comunicador importantíssimo à população, e tem uma fundamental participação na popularização da discussão sobre certos temas, como drogas, AIDS e câncer. É, portanto, um nome central quando se pensa em jornalismo de saúde no Brasil. Sua posição é curiosa, pois funde em torno de si tanto os papéis de jornalista (o mediador da notícia) quanto de especialista (por isso, é comum que em suas matérias ele seja a única voz “especializada” a ser consultada).
O respeito em torno da carreira de Drauzio Varella tem-se constituído ao longo de décadas – e, ao longo desses anos, o médico/ comunicador tornou-se gradativamente mais popular. Sendo assim, a reportagem sobre as presas trans é apenas mais uma peça da importante obra jornalística construída pelo doutor durante todo esse tempo. Mas o que há, afinal, de tão especial naquilo que Drauzio faz, a ponto de ele ser louvado de forma unânime por praticamente todo mundo que conhecemos?
Para tentar responder a essa pergunta, penso que vale a pena primeiro atentar à reportagem do Fantástico em suas características estéticas. Como disse anteriormente, a matéria parece mais próxima das escolhas de estilo típicas de um documentário, e distante de uma reportagem convencional. Ela é atrelada a muitos silêncios, enquadramentos atípicos do jornalismo, luz e sombra que trazem um ar barroco sobre os corpos ou desfocam o rosto das fontes. Ou seja, a produção é sofisticada e corajosa para os padrões de um jornalismo sobre essa temática (é bastante difícil colocar poesia e beleza em imagens de presídios, alguém poderia dizer).
Drauzio, como excelente mediador que é, parece ter a medida exata entre o respeito, o envolvimento emocional e o limite para que isso descambe à exploração da tragédia.
Em seguida, vemos as personagens que aparecem, pouco a pouco, em cena. São diversas trans, homens que se descobriram mulheres, e que pararam nas cadeias, em parte – como lucidamente esclarece Drauzio – porque o mundo social parece ter destinado a elas esse lugar. No país, ainda é muito difícil ser trans e não cair nas margens: prostituir-se mesmo sem desejar; envolver-se em crimes pois não há muitas possibilidades dignas.
A grande qualidade da reportagem, ao que me parece, é mostrar exemplos positivos (de mulheres trans que na prisão encontraram aceitação, possibilidades profissionais, acolhimento), sem tentar “aquecer” a narrativa com um tom de redenção barato que seria a escolha de emissoras mais sensacionalistas. Ao final, encerra-se com a história de Lolla, que conquista a liberdade e vai tentar ganhar a vida no sinal, vestindo-se como palhaço e vendendo água aos carros que param. O tom é agridoce e realista: sabemos, por fim, que a estrada da ressocialização é difícil – e ainda mais difícil para quem é transexual.
Drauzio, como excelente mediador que é, parece ter a medida exata entre o respeito, o envolvimento emocional e o limite para que isso descambe à exploração da tragédia. Fala de igual para igual com as presas. Não as absolve, não as vitimiza, não está ali para defender nem acusar ninguém, mas sim para argumentar em razão do mínimo: a dignidade que deve ser garantida a todos, o preso e o livre, como um princípio básico da vida. Esta é a marca da vivência deste médico: o corpo a corpo, o trabalho de formiguinha que tantos se sentiriam humilhados em fazer (conta que, no início do trabalho voluntário que fazia no Carandiru, foi o primeiro médico que tocava nos presos – os demais “doutores” se recusavam a examiná-los com o tato).
O momento mais comovente da reportagem do Fantástico, como prova a repercussão digital, é a entrevista que Drauzio faz com Susy, presa que não recebe visitas há cerca de oito anos. De forma econômica, Drauzio comenta, paternalmente: “é muita solidão, né, minha filha”- e a abraça, de forma contida, sem arroubos sensacionalistas. E nos prova: no jornalismo, menos é mais, e a tragédia da vida cotidiana é mais emocionante do que os tons gritantes que muitas emissoras televisivas tentam dar às histórias tristes. E essa é uma lição que o famoso médico, em sua intocável sobriedade, parece nos dar ao longo destes anos de trabalho. Que o “jornalismo Drauzio Varella” contamine cada vez mais as emissoras de televisão.