Muito se fala hoje sobre o fato de que, hoje, os momentos são de incertezas e nebulosidades, especialmente no que diz respeito do que pensar e o que se pode dizer. Alguns falariam do engessamento da liberdade de expressão, do endurecimento do politicamente correto, naquela lógica de pensamento de que “tudo hoje está muito chato”. Outros argumentariam sobre um necessário período de regulação dos discursos, em que coisas que eram ditam naturalmente até então passam a ser explicitadas nas ideologias (e preconceitos) que carregam.
Independente de como se veja o atual cenário, certo está que a televisão continua tendo um forte papel na consolidação (ou desconstrução) destes discursos – e, por isso mesmo, esta discussão sobre o que se pode ou não dizer em rede nacional é sempre recorrente. Parte-se do pressuposto, claro, de que aquilo que se diz causa ressonâncias e impactos em toda a população e que, portanto, os personagens midiáticos (especialmente os mais “respeitados”, os formadores de opinião) deveriam sempre tomar cuidado quanto àquilo que dizem.
Faz sentido, é claro. Frente a isso, levanto aqui alguns episódios vistos na televisão nas últimas semanas. O mais famoso foi a fala de Patrícia Abravanel no Programa Silvio Santos, quando disparou algumas considerações sobre a sua visão da homossexualidade. A filha do patrão desenvolveu seu raciocínio da seguinte forma: “Eu não sou contra o homossexualismo [o termo é incorreto, pois a palavra homossexualismo vê a homossexualidade como doença e não como uma orientação], mas sou contra falar que é normal. Eu vou pegar mulher agora e vou experimentar. Principalmente para o adolescente. E outra, mulher com mulher não é tão legal assim. Não tem aquele brinquedo que a gente gosta bastante”.
A fala de Patrícia repercutiu nas redes, logicamente, de uma forma muito negativa. O episódio, no entanto, se estende para além da frase infeliz. Vejamos as demais questões envolvidas: a apresentadora estava em um quadro do pai, com a participação de outros atores, os quais reiteraram ou discordaram de seus comentários homofóbicos. Ainda assim, a fala não se situava num consenso, e o próprio pai Silvio Santos reagiu via humor, chamando a filha de “carola” no ar. Ou seja: ele mesmo promoveu uma espécie de recontextualização à fala de Patrícia, ao sugerir que sua fala estava condicionada à visão de mundo vinculada à sua religião.
Em outras palavras, não se tratava de um discurso homogêneo, mas, de alguma forma, de um evidente dissenso entre visões – discussão alongada, posteriormente, nas redes sociais. Alguns lembraram que o próprio SBT de Silvio Santos foi responsável por uma espécie de democratização da cultura drag a partir dos concursos de transformistas, promovidos desde os anos 80.
Como conclusão da polêmica, Patrícia acabou se desculpando (duas vezes) sobre a sua fala. De todo modo, levanto aqui outra questão referente à televisão. A fala de Patrícia Abravanel tinha ainda uma espécie de cunho “sociológico”, tangenciando – de forma bem despreparada, evidentemente – uma fala de fundo mais complexo, sobre mudanças sociais e as reorganizações entre os gêneros, banalização das relações afetivas, etc.
De alguma maneira, a necessidade de regulação dos discursos posteriormente é um bom sintoma de que estamos evoluindo e que um debate se concretiza por meio da televisão.
Ao que me parece, seria um tema que talvez caberia melhor em um debate de especialistas, os que estudaram tais assuntos e, portanto, poderiam difundir informação mais consistente, de maior relevância. Creio que hoje há um excesso de falação vazia na televisão – simbolizados, por exemplo, pelos formatos televisivos ao estilo talk show, em que vários atores sociais aparecem como autorizados a falar sobre qualquer coisa, por mais despreparados que sejam. Uma discussão necessária seria pensar até que ponto estes formatos agregam ou desorientam os espectadores.
Há outros episódios mais graves que a fala de Patrícia Abravanel e que continuam meio que incrustados nas atrações televisivas. Refiro-me a quando as visões de mundo preconceituosas aparecem de forma sutil, automatizadas, muitas vezes como piada. É o que ocorreu nesta mesma semana, como apontou o crítico Mauricio Stycer, no programa Video Show, quando o ator Orã Figueiredo e o apresentador Otaviano Costa fizeram uma tentativa de gracejo que rebaixava as travestis.
No ar na novela Totalmente Demais, o ator faz um papel em que contracena com três mulheres. Assim, fez uma piada sobre como sua situação melhorou, uma vez que em novela anterior era casado com travesti. A resposta de Otaviano foi: “para quem foi casado com traveco, tá bem demais”. Posteriormente, Otaviano (que se associa sua imagem a um discurso de tolerância no programa Amor e Sexo) se desculpou também nas redes sociais.
A necessidade de regulação dos discursos posteriormente é um bom sintoma de que estamos evoluindo e que a televisão levanta reflexões relevantes. De alguma forma, o fato de que certas falas pareçam aceitáveis no bar (como chamar travesti de traveco, homossexual de bichinha, etc.) mas não passem mais impunes na televisão legitima a importância do meio enquanto instância promotora de um debate.
Como dito na abertura do texto, a discussão sobre os limites é importante, até para não nos tornarmos caçadores de bruxas imaginárias e, aí sim, responsáveis por tolher a liberdade de expressão. Acredito que só teremos uma ideia clara sobre o tempo que vivemos futuramente, quando formos reanalisados e recontados pela história. Há uma linha de pensamento que indaga: estamos vendo coisa onde não há nada? Acompanhando os temas do momento de forma cada vez mais acurada, o programa Zorra satirizou em um quadro esta desconfiança quanto ao “excesso de problematização do mundo”. No esquete, uma mulher leva um fora do namorado e passa a encontrar várias razões inconscientes para não ver a realidade.
Ao ironizar uma situação na vida privada, Zorra, de alguma forma, parece fazer uma crítica ao excesso de “opinião formada sobre tudo” na tevê e no mundo lá fora. Isto é avanço ou retrocesso? Mas isto já é assunto para outra discussão.