Por que a obsoleta monarquia britânica ainda nos encanta tanto? Se ao mesmo tempo é absurdo observar a família real em trajes que valem o preço de um automóvel enquanto o povo reivindica melhores salários pelas ruas de Londres, o mundo também para em frente à televisão para assistir ao casamento do príncipe William e Kate Middleton, duque e duquesa de Cambridge.
Essa curiosidade pela vida dos monarcas britânicos talvez seja o mais próximo de um conto de fadas para adultos possível. Afinal, em tempos sombrios de Trump e Bolsonaro, é um alívio poder alcançar uma quebra da realidade, ainda que por algumas horas. Esse encantamento parece ser a sensação prevalente quando assistimos a The Crown, nova série original da Netflix que traz como proposta contar o início do reinado da rainha Elizabeth II.
O grande desafio é tentar colocar a audiência no lugar dos personagens, algo muito difícil quando temos pessoas tão inalcançáveis na tela.
Muito vem sendo falado sobre o exorbitante orçamento da Netflix para produzir a série, algo em torno de US$ 100 milhões. Felizmente, o investimento aparece em todos os detalhes e nada está ali apenas para enfeitar. Diferentemente de Downton Abbey, que faz sucesso por ser uma excelente novela de alto orçamento, The Crown traz um ponto de vista muito mais sóbrio (e sombrio) do que seria a vida da família real britânica. Tudo o que esperamos da história está lá: vestidos lindos, mansões impressionantes, decoração cafona, elegância ao extremo e o resto do que nosso imaginário nos diz ser real. Entretanto, também mergulhamos na metódica e cruel vida política na década de 1950, quase sempre pelos olhos de uma jovem rainha e sua família.
O criador da série, Peter Morgan, é mestre em dramatizar importantes fatos pontuais da política, como a entrevista do presidente americano Richard Nixon ao jornalista David Frost (Frost / Nixon), os eventos que levaram Tony Blair ao cargo de primeiro-ministro britânico (The Deal), todo o absurdo da liderança do ditador Idi Amin (O Último Rei da Escócia), os dias de Brian Clough como dirigente de um time de futebol da Inglaterra (Maldito Futebol Clube) e a rivalidade entre os pilotos James Hunt e Niki Lauda durante a Fórmula 1 de 1976 (Rush – No Limite da Emoção).
Mas a obsessão de Morgan é mesmo pela monarca. Além de roteirizar o aclamado filme A Rainha, que foca na reação de Elizabeth sobre a morte da princesa Diana, em 1997, Morgan ainda escreveu a peça The Audience, que mostra os encontros semanais da rainha com os primeiros-ministros desde sua coroação, em 1952, até os dias atuais. É nesta peça que The Crown é inspirada. Planejada para seis temporadas, que devem ser contadas em oito ou dez anos, Morgan pretende mostrar todo o reinado de Elizabeth desde sua juventude até a idade atual.
Logo no início, somos apresentados a uma jovem princesa (a excelente Claire Foy), que não pensa em mais nada a não ser casar com o príncipe Phillipe (Matt Smith). Seu pai, o rei Goerge VI (Jared Harris), está com câncer de pulmão e já bastante frágil. Sem saber da condição do pai, Elizabeth é introduzida como líder simbólica em alguns compromissos da família real, sem se dar conta do que a espera. De forma lenta, mas jamais cansativa, os primeiros episódios focam mais na agonia do rei George e na responsabilidade do cargo, que eventualmente será passada para sua filha.
Assim que Elizabeth assume seu protagonismo na história, o talento de Claire Foy fica mais evidente ao mostrar uma rainha insegura e ingênua, para logo depois apresentar uma frieza que jamais soa artificial. Seu olhar, antes doce e sonhador e agora pesado e com olheiras, consegue sintetizar perfeitamente qual é o questionamento principal da série: o peso da coroa e a empatia do público. É interessante ver os pormenores daquela fascinante sociedade misteriosa enclausurada em grandes palácios, mas o grande desafio é tentar colocar a audiência no lugar dos personagens, algo muito difícil quando temos pessoas tão inalcançáveis na tela.
E se a primeira temporada de The Crown é sobre o início do reinado de Elizabeth no trono e o crescimento de sua influência, a série também se preocupa bastante em mostrar o declínio do primeiro-ministro Winston Churchill (John Lithgow). Famoso por sua luta contra Hitler, Churchill voltou ao poder em 1951, já com a saúde debilitada e bem distante do que a classe média britânica precisava na época. O minucioso trabalho de Lithgow é importante para entendermos o papel do estadista para o Reino Unido e suas falhas como líder no final da vida.
Assim, embora a vida pessoal da rainha nos fascine, o mais interessante da série é mesmo a história política. Vemos, por exemplo, um excelente episódio focado no Grande Nevoeiro de 1952, uma crise ambiental em Londres que matou mais de 12 mil pessoas e levou o país a proibir a queima de carvão. Também ficamos sabendo sobre os detalhes da renúncia de Edward VIII, o rei que abdicou do trono em 1936 porque queria se casar com uma mulher divorciada, algo que causaria um colapso na estrutura política inglesa. Vemos toda a complicada história da irmã da rainha, a princesa Margaret (Vanessa Kirby), que dividiu o país ao quebrar diversos protocolos reais e foi proibida de casar com um homem divorciado porque a igreja jamais aceitaria. Todos esses fatos fazem que The Crown não se limite apenas a contemplação, mas fazem com que os telespectadores mais curiosos pesquisem os fatos vistos na série em livros ou na Internet. E mesmo para quem já conhece, o roteiro é escrito de tal forma que, mesmo uma história amplamente divulgada pela mídia internacional e com finais fechados, o enrendo ainda é capaz de surpreender.
Com uma direção impressionante, que conta com a presença de Stphen Daldry atrás das câmeras (Billy Elliot, O Leitor, As Horas), The Crown é inteligente em todos os seus enquadramentos, meticulosa em sua direção de arte, especialmente nos ambientes internos, e não deve nada ao cinema. Há, ainda, uma marcante direção de atores, com detalhes muito delicados na feição de cada um, especialmente da rainha, que consegue alternar doçura e altivez sem precisar dizer nada. Com uma fotografia que expõe de forma nada leve a melancolia daquela família, o público consegue facilmente se transportar para as paredes frias do Palácio de Buckingham.
Entregando um cuidado admirável de Peter Morgan com a precisão histórica, The Crown mostra que a coroa talvez não seja tão pesada como antigamente, mas são nos detalhes que a monarquia ainda vive, ao menos em nosso imaginário.