Ryan Murphy tem em seu currículo trabalhos interessantes (Nip/Tuck, Glee, American Horror Story e a recente Scream Queens). Nem todos os críticos, porém, o aceitam com facilidade, especialmente porque suas criações raramente conseguem manter uma linearidade. No cinema, chamam atenção dois filmes: Comer, Rezar, Amar, sucesso de público, e o contraditório Correndo com Tesouras. Mas mesmo que Murphy ainda lute para conseguir o respeito da crítica, é com The Normal Heart, premiado telefilme, que o diretor entrega sua obra-prima até agora, em uma produção necessária, forte e passional.
Vencedor do Emmy e do Globo de Ouro de melhor filme feito para a TV, o drama, produzido pela HBO, narra a história do início da crise da AIDS em Nova York nos anos 1980, com foco no esforço de vários ativistas gays e seus aliados na luta para expor a verdade sobre a epidemia para uma nação que está negando os fatos. Adaptado da peça homônima de Larry Kramer – que também assina o roteiro do longa – e dirigido por Murphy, o filme não tenta amenizar ou romantizar as situações em nenhum momento.
Jornais e revistas imprimiam pânico, segregavam e puniam homossexuais, não somente em Nova York, mas em todo o mundo. Eficiente na maneira de mostrar como o jornalismo e o governo foram negligentes, Murphy faz questão de ser metódico ao apresentar a forma como a doença começou a ser divulgada. Com uma câmera inquieta, quase nunca fixa, o público se sente ansioso, desesperado, angustiado ao assistir o sofrimento de milhões de pessoas, familiares e amigos.
Ainda assim, há sempre uma ternura e sensibilidade na câmera de Murphy, mesmo quando somos obrigados a contemplar uma violência excruciante.
The Normal Heart, então, mostra um Ryan Murphy diferente do que estamos acostumados a ver. Saem de cena diálogos irônicos e rápidos para diálogos raivosos. Raiva, aliás, define todo o roteiro e direção. Todos estão raivosos porque somente após quatro anos do primeiro caso de “câncer gay” registrado, o vírus recebeu um nome próprio – AIDS.
Todos estão raivosos porque o prefeito, o presidente e a sociedade distorcem fatos. Raivosos porque conservadores se aproveitam para disseminar um ódio insano que reverberaria até os dias atuais. Raivosos porque a própria comunidade gay se recusa a acreditar que, após anos de luta a favor da liberdade sexual, agora estavam querendo tirar justamente o que os fazia completos: o amor livre. O filme, a todo momento, traz à tona uma hipocrisia que matava cada vez mais americanos e se alastrava mundo afora.
E se a raiva predomina em todos os personagens, no público a sensação é de desespero. Como toda a obra de Murphy, cenas inspiradas, fortes e marcantes tomam conta da tela (e quem assistiu Nip/Tuck sabe do que estou falando). Se o diretor mostra uma emocionante cena de sexo entre dois homens, na qual a intimidade e o amor entre eles gritam mais alto do que o discurso de promiscuidade da sociedade e da própria comunidade gay, também somos obrigados a ver a fortíssima cena da morte de um personagem que, por falta de assistência do hospital, tem seu corpo jogado no lixo. Ainda assim, há sempre uma ternura e sensibilidade na câmera de Murphy, mesmo quando contemplamos uma violência excruciante.
Vemos, por exemplo, uma emocionante cena em que Ned Weeks (Mark Ruffalo) dá banho em seu namorado Felix (Matt Bomer), já na fase crítica da doença. Também, por meio de Tommy Boatwright (Jim Parsons), que coleciona cartões com o nome dos amigos que vão morrendo, percebemos a melancolia e a solidão de cada uma dessas pessoas, que, pouco a pouco, começam a viver um ritual de despedida.
E Murphy, felizmente, não realiza uma obra panfletária. Assim, cada personagem traz um poderoso discurso com diferentes pontos de interpretação, contradizendo o patriotismo cego, geralmente expressados em muitos filmes americanos (“Por que estão nos deixando morrer?”). Assim, por meio de personagens complexos, Murphy provoca como ninguém. Mais de 35 milhões de pessoas morreram em decorrência da AIDS e o diretor tenta dar voz a cada uma delas, por meio de alguns personagens que gritam, esbravejam, imploram que sejam ouvidos. O roteiro não se restringe a mostrar o sofrimento da epidemia, mas faz questão de incluir o amor e o relacionamento daquela comunidade, que se via tão isolada do resto do mundo.
The Normal Heart é, enfim, uma denúncia, um pedido para que não se esqueça do passado e de pessoas que foram prejudicadas pelo ostracismo do governo e da sociedade.
E a escalação dos atores não poderia ter dado mais certo, com Mark Ruffalo em uma de suas melhores atuações; Julia Roberts se libertando de sua habitual atuação já tão previsível, apresentando uma médica dura, indignada, forte, com uma das cenas mais impactantes de sua carreira; assim como Alfred Molina, Jim Parsons e Matt Bomer – este último se despindo de toda a pose de galã para viver cada estágio da doença.
É, por fim, um filme obrigatório, onde cada dolorosa cena é contraposta com uma beleza melancólica que, embora escancare a realidade, não deixa de dar esperanças. É uma obra necessária e atemporal, que consegue a proeza de fazer o público sair da confortável posição de espectador passivo para sentir na pele a angústia, não somente de um vírus, mas da indiferença.