Após 11 meses de uma comentada reformulação, a Globo reestreou, na última semana, seu Zorra Total, o mais antigo programa humorístico da grade, agora denominado apenas Zorra. Em meio a uma alta expectativa (estimulada, vale dizer, por uma convicção coletiva de que o programa é ruim e deveria simplesmente ser extinto), Zorra enfrenta um desafio: o de se situar como um bom programa de comédia frente aos concorrentes sofisticados da internet e da própria Rede Globo (as duas temporadas de Tá no ar foram sucesso de público e crítica) e, ainda assim, continuar atraente a um público cativo já acostumado a assistir à atração (às vezes por pura inércia) nas noites de sábado. Não é pouca coisa.
A julgar pelo primeiro episódio, as estratégias de renovação são diversas. Para começar, há continuidade com o próprio humor feito pelo Tá no Ar: diretor, roteiristas e vários atores são os mesmos. O formato de esquetes curtos, alguns com pouquíssimos segundos, remete novamente ao programa que satiriza a televisão. A autoironia de Tá no Ar também repercute na reformulação: a primeira edição de Zorra começou com um musical (bastante comentado nas redes sociais) em que o programa ri de si mesmo ao cantar que, caso a reforma não eleve a audiência, será sempre possível resgatar os personagens de sucesso (como Valéria e Janete), ou demitir todos os atores para que sejam contratados pela Rede TV!.
A nova linguagem do humorístico ainda demonstra certo esforço pela sofisticação ao abrir mão dos recursos fáceis já explorados exaustivamente durante todos os anos do programa, como as claques (aquelas risadas artificiais de fundo, utilizadas no intuito de marcar o riso do público que o assiste) e as trilhas sonoras que igualmente significam a graça para o público. Um esquete bastante didático com Agildo Ribeiro, inclusive, evidencia estas “novidades” ao espectador.
Interessante notar que, ainda que haja clara intenção de refinar o humor do Zorra, as risadas provocadas pelos quadros são tímidas. O novo Zorra, ao se deparar com o conflito de fazer rir mas permanecer um programa “familiar”, acaba se colocando como um Porta dos Fundos domesticado, digerível para a maioria. É preciso fazer rir sem o risco de incomodar o grande público (ao menos que seja para rir da própria emissora, por meio dos concorrentes – caso da piada com a Rede TV!). A proximidade e o distanciamento do humor do Porta se revela, inclusive, na abordagem dos temas – Zorra trouxe um quadro que reencena momentos bíblicos, como já fez Porta em alguns de seus melhores episódios; mas, diferente do concorrente, o quadro (que transforma o anúncio do nascimento de Jesus em uma coletiva de imprensa) é anódino, não corre o risco de ofender nem o mais fervoroso dos cristãos. Talvez o esquete que mais se aproxima ao humor que está lá fora, na internet, seja aquele que brinca com as prioridades de vários grupos (idosos, grávidas, deficientes) na hora de realizar um assalto. Ainda assim, é um humor comportado, que ladra mas não morde, que permanece numa zona de conforto e não chega a ameaçar o limite do politicamente correto.
O novo Zorra, ao se deparar com o conflito de fazer rir mas permanecer um programa “familiar”, acaba se colocando como um Porta dos fundos domesticado, digerível para a maioria. É preciso fazer rir sem o risco de ofender o grande público.
Este talvez seja um dilema eterno à televisão aberta: quando pretende experimentar alguma nova estratégia em busca de qualidade, é “condenada” a pensar numa linguagem que renove os padrões estabelecidos, mas ainda permaneça capaz de comunicar com um público imenso, sempre correndo o risco de que as melhorias signifiquem rejeição. É sintomático o caso da novela Babilônia, que investe em certas inovações narrativas e na construção de personagens, mas tem enfrentado crises de audiência. Se entendermos que historicamente a televisão tem se adequado melhor às produções de pouca qualidade, precisamos atentar também às dificuldades para fazer com que novas estratégias não desagradem ao “paladar” do espectador.
Neste sentido, o novo Zorra se revelou ainda um tanto engessado, tendo em vista os concorrentes atuais (como o já citado coletivo Porta dos Fundos) e os clássicos de humor que o inspiram, como o sitcom Seinfeld (comédia que marcou a televisão americana ao humorizar o absurdo presente no cotidiano, prometendo falar “sobre nada”), o quarentão Saturday Night Live ou o unânime Monty Python. Todos marcaram época ao viabilizar um humor arrojado, algo ofensivo, que desnudava certas situações e hipocrisias invisíveis na cultura de seus países. Um humor, portanto, que carrega sobretudo um olhar político, uma visão de mundo.
A título de ilustração desta ousadia dos clássicos, destaco o humor da trupe canadense (pouco conhecida no Brasil) Kids in the Hall, cujo programa homônimo – que durou apenas 6 anos – inspirou gerações de comediantes, incluindo os brasileiros (é uma das referências mais citadas pelo grupo Porta dos Fundos). O quadro “Comfortable”, reproduzido aqui, é impagável: retrata uma cena tipicamente suburbana (um jantar entre casais amigos), e faz rir ao brincar com as perversões que habitam a fachada da normalidade. Um tipo de humor que provoca o desconforto, desacomoda. Desafio o leitor a pensar se algum esquete deste tipo seria possível na grade aberta da televisão.
Em tempo: a primeira edição de Zorra trouxe alguns momentos inspirados, como a cena da moça revoltada com o pigarro de uma vendedora de loja (uma clara referência a Seinfeld, como lembrou o crítico Maurício Stycer) e o esquete final, que satiriza as mobilizações “políticas” acerca de tudo e nada, potencializados pelas redes sociais (que, no programa, envolvem a metáfora da própria rua como espaço de debate público). No entanto, a veiculação de uma piada sobre uma senhora que registra na delegacia o rapto de um Tupperware não deixa mentir: talvez precise mais se quiser permanecer interessante a um público que hoje pode assistir quando quiser a produtos muito melhores, como Porta dos Fundos e assemelhados.
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