Era 1975. Marina Abramović, aos 29 anos, estava no começo de sua carreira – apesar de saber desde sempre que queria se tornar artista, vinha de um cenário familiar conturbado.
Começava seu legado com uma performance que mais tarde seria considerada a mais arriscada de toda sua trajetória. Com 72 itens dispostos em uma mesa – que iam desde flores a um revólver carregado com balas -, a artista se pôs à mercê do público da Galleria Arte Contemporanea Napoli Campania durante seis horas.
Na performance, o corpo é o meio e o objeto: é uma arte efêmera e imaterial, uma troca potente entre artista e público. A proposta desta, em questão, era clara. Poderiam fazer o que quisessem com o corpo de Marina e os 72 objetos expostos, e ela não oferecia resistência.
Em um experimento que poderia ser claramente tanto artístico quanto antropológico, os espectadores da Galeria enlouqueceram com o poder que tinham em suas mãos.
Em pouco tempo de performance, o corpo de Marina Abramović foi movido de um lado para o outro. O crítico de arte Thomas McEvilley, que observava todo o ato, disse que as coisas começaram tímidas, mas depois escalaram rapidamente.
No fim, as roupas de Marina haviam sido cortadas, e ela jazia nua, com cortes de gilete e faca por todo corpo e um revólver carregado e apontado para a própria jugular colocado em suas mãos.
Ao término das seis horas de exposição, ela se levantou e todo o público presente correu. As pessoas que flagelaram e acorrentaram seu corpo, acariciaram seus seios e partes íntimas, não tiveram coragem de encará-la.
Não importa quantas fotos e vídeos registrem seus atos, somente o público presente saberá o que é assistir e participar. O corpo é o meio, o corpo é o objeto, o corpo é a arte.
Acredito que grande parte das pessoas poderia considerar, inicialmente, a proposta desta performance absurda, além da artista meramente louca.
Há de se portar, de fato, um pouco de loucura para ter a coragem deMarina Abramović. Compreendo a reação inicial, mas endosso que uma performance bem planejada e estruturada tem fins muito além de nossa pré-compreensão.
Certeiramente, a artista afirmaria mais tarde que a performance em questão revela algo terrível sobre a humanidade: “mostra quão rápido uma pessoa pode machucar você quando as circunstâncias o permitem.
Mostra quão fácil é desumanizar alguém que não luta de volta, que não pode se defender. Mostra que, se providenciada a situação, a maioria das pessoas consideradas ‘normais’ pode se tornar verdadeiramente violenta”. A força dessas constatações é inegável – e esse era apenas o começo da carreira de Marina Abramović.
O legado Abramović
Considerada a “avó da performance“, Marina teve uma infância oprimida no pós-guerra do leste europeu que moldou a mulher criativa que se tornaria, já que, sempre solitária, foi forçada a criar um mundo de distrações para si mesma. Já adulta, seus pais ainda lhe batiam como punição e por vezes queimaram alguns de seus quadros. É curioso pensar que uma mulher tão transgressora e à frente de seu tempo fugiria de casa somente aos 29 anos: em suas palavras, não o fez antes porque simplesmente “nunca havia passado por sua cabeça”.
Parte de uma família muito tradicional de Belgrado, seus progenitores eram heróis de guerra. Pergunto-me o que pensaram quando a filha, já aos 30 anos, foi morar com o namorado em uma van em Amsterdam, sustentando-se somente da arte. Pergunto-me também o que pensaram quando depois se tornou um ícone da história da arte contemporânea.
Muitos tentaram reproduzir os feitos de Marina Abramović. Rhytmn 0, por exemplo, foi recriado por inúmeros artistas. Outras performances de destaque incluem Breathing In/Breathing Out (1977), realizado com seu companheiro Ulay, onde, ajoelhados e unidos pelas bocas, esvaziavam e enchiam os pulmões com o ar um do outro, levando-os à exaustão e à ingestão extrema de gás carbônico; Rest Energy (1980), também em parceria com Ulay, onde o ex-companheiro apontava uma flecha engatilhada para seu peito enquanto a artista segurava o arco; The Lovers (1989), que simbolizava a separação do casal e envolvia 90 dias de caminhada na Grande Muralha da China. Os dois saíram de extremidades opostas da Muralha para se despedirem em um último encontro no meio do monumento.
A vida da artista é bastante cinematográfica – quem sabe até renda um bom filme no futuro. Provavelmente não estará à sua altura, mas nenhuma película se aproxima realmente da realidade de quem é e era uma personalidade da arte como Marina.
Por não receber amor da família, a artista foi atrás de outras coisas que pudessem lhe fornecer algo semelhante. E encontrou tal sentimento na sua relação com o público – sem ele, sua arte jamais existiria, porque a performance está intrinsecamente ligada aos seus espectadores. O corpo como meio – o corpo como ato efêmero.
Marina, pioneira na popularização da performance, provou ser esta a única forma de arte verdadeiramente desatada de amarras econômicas: apesar de rica em essência, ainda é e sempre será imaterial. Não importa quantas fotos e vídeos registrem seus atos, somente o público presente saberá o que é assistir e participar. O corpo é o meio, o corpo é o objeto, o corpo é a arte. E não podemos pendurá-lo em casa.
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