O cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, diretor de O Som ao Redor e Aquarius, concedeu entrevista ao jornalista Paulo Camargo em 2013. À época, Mendonça estava de viagem marcada para Curitiba, onde ministraria uma oficina de roteiro no projeto Ficção Viva II. Por telefone, o diretor falou sobre aspectos importantes de seu longa de estreia, que havia sido listado entre os dez melhores do ano pelo jornal The New York Times e pela revista britânica Sight and Sound, além de ter vencido vários prêmios em festivais dentro e fora do Brasil.
Escotilha resgata este papo com Kleber Mendonça, anteriormente publicado no jornal Gazeta do Povo. Leia a seguir a conversa com o diretor:
Paulo Camargo: A prestigiada publicação norte-americana Chicago Reader destacou que uma das maiores qualidades do filme é seu senso de geografia e espacialidade. Essa já foi uma preocupação sua ao escrever o roteiro?
Kleber Mendonça Filho: É sensacional esse ponto, porque isso já está no roteiro. Acredito muito no cinema de ficção que, numa outra camada, também é um registro físico do lugar e do tempo em que ele se passa. Eu não tenho nenhum plano, nenhuma ideia de fazer um filme que se passe em lugar nenhum. Talvez O Som ao Redor pudesse ter sido feito em Curitiba. É claro que adaptando especificidades da cidade em si. Se eu fosse curitibano, se eu tivesse uma experiência de vida em Curitiba, talvez pudesse fazer o filme aí. Mas ele se passa em Recife, na rua onde eu moro, e eu acho que os filmes, inclusive os ruins, ou os que a gente considera ruins hoje, tendem a ganhar um valor agregado com o passar do tempo. E isso, para mim, é muito importante.
Em primeiro lugar, veio a relação dos personagens com o espaço. A cidade e a sua arquitetura estão indo contra as pessoas. Eu acho que há vários momentos no filme em que os personagens são filmados quase como ratinhos dentro de uma gaiola, em um laboratório, e eles são obrigadas a andar de uma maneira estranha, e passar por obstáculos e dobrar à esquerda porque assim que a coisa foi desenhada. Estão totalmente condicionadas àquela geografia, de uma maneira não natural. E não humana, eu acho.
E de que forma essa preocupação com o ambiente se estendeu do roteiro à forma de filmá-lo?
Existem muitas maneiras de filmar. Mas uma que eu tenho percebido muito no cinema contemporâneo é a com a câmera colada na cara das pessoas, e daí você não tem muita ideia do espaço onde as pessoas estão. Uma coisa muito claustrofóbica de ter close-ups o tempo todo. Eu economizei esses planos fechados no rosto dos personagens para momentos bem particulares. Na maior parte do tempo você vê, de maneira muito generosa, onde as pessoas estão. Essa geografia é 50% do efeito dramático. Os outros 50% é o personagem, como ele fala, como ele reage.
Quando, por exemplo, os seguranças vão pedir a benção a Francisco (senhor de engenho aposentado, vivido por W.J. Solha), eles são deixados na área de serviço, em pé, parados. E você vê o local. Tem a maquina de lavar ao lado, roupas penduradas, amaciante. Eles têm de ficar parados, esperando o Francisco vir falar com eles. E isso para mim é muito significativo. Antes de chegar, eles são desviados para a área de serviço do prédio.
‘Se você olhar para a planta de um prédio de classe média alta no Brasil, a distribuição dos cômodos ainda obedece a todo um treinamento social, que diz que a área de serviço é onde os pobres vivem, à parte da casa à qual eles têm acesso.’
Você opta, no filme, por falar de um universo muito próximo ao seu, da rua onde você mora. São referências suas não apenas geográficas, mas também sociais, das relações entre patrões e empregados, dentro das famílias.
São códigos muito nossos, e isso eu descobri de uma forma muito interessante nas viagens que fiz para fora do país com o filme. Você tende a achar que o estrangeiro não capta certas coisas, mas as pessoas entendem muito bem o que você quer dizer. Essa coisa da área de serviço foi muito destacada por um crítico na Dinamarca. E não era um expert em cultura latino-americana.
Se você olhar para a planta de um prédio de classe média alta no Brasil, a distribuição dos cômodos ainda obedece a todo um treinamento social, que diz que a área de serviço é onde os pobres vivem, à parte da casa à qual eles têm acesso. A empregada raramente entra pela porta da frente, que muitas vezes é completamente dissociada da de serviço. Então, esse tipo de coisa, estando no roteiro, seguindo uma lógica social, interna, entra no filme como um aspecto importante, fundamental para a dramaticidade da história.
Muito se fala que no Brasil não se faz filmes sobre a classe média. Embora O Som ao Redor fale sobre várias classes sociais, e as relações entre elas, esse recorte da sociedade está muito presente, de forma crítica, mas nunca caricata. Você tem uma tese que explique por que isso não é feito com mais frequência na produção nacional?
Não, essa pergunta é muito difícil de ser respondida, porque ela envolve, talvez, criticar negativamente o que tem sido feito no cinema brasileiro e ela envolve uma coisa que, talvez, seja mais difícil ainda de responder. O filme tem sido muito elogiado pelo seu aspecto mais óbvio. A coisa mais óbvia que existe é um artista falar de si mesmo, falar do seu universo. E eu não entendo muito como algo tão claro e evidente passe, sem uma análise, despercebido e esteja ausente dessa produção atual.
Existem algumas produções que lidam com isso, mas são exemplos isolados, como Trabalhar Cansa (2011), de Marco Dutra e Juliana Rojas. Mas é também um filme anormal e um ponto fora da reta. Em O Som ao Redor, como em meus outros trabalhos, eu falo de coisas muito próximas de mim. É algo que eu vejo. Eu não tive uma família grande, mas participei de famílias grandes, aristocráticas, inclusive; de amigos, de ex-namoradas, eu sei como eles funcionam. Aliás, uma ideia muito importante que eu tive para o filme surgiu de uma relação de trabalho que eu tive aqui no Recife. Eu me sentia um cortador de cana em uma empresa moderna pernambucana, onde a lógica era muito a de um engenho mesmo, com um senhor de engenho como chefe. Uma coisa muito dura e arcaica, mas ao mesmo tempo em um ambiente moderno, com computadores, aparelhos de fax. Então, tudo isso me dá subsídios para tentar falar.
Uma coisa que me deu muito medo no filme foi o fato de ter sido a primeira vez que eu tive de lidar com personagens de classes mais baixas. Então, eu os construí de mim para eles. Ou seja, das relações que eu já tive de trabalho, com empregadas, com flanelinhas. Mas a gente nunca vai para a casa deles no filme. Aí, eu já estaria em um terreno onde eu me sentiria muito desconfortável. Eu tenho muito medo do “fator turismo”.
Você se sentiria capaz de representar esse outro, o pobre, em seu próprio ambiente?
Tanto não tenho, que eu não fiz isso. Eu poderia ter ido para a casa do Clodoaldo (Irandhir Santos). Colocar lá no roteiro: “Corta para Clodoaldo, que mora numa comunidade pobre”. Eu não conseguiria fazer isso. Então, a relação com os personagens mais pobres, vem da relação que tenho com eles na rua. A gente mostra uma favela no filme, mas do “quadragésimo andar” de um prédio, de uma cobertura, do ponto de visto do personagem João (Gustavo Jahn), com um zoom.
A relação do personagem João, neto de Francisco, um senhor de engenho, com a empregada doméstica, e a família dela, é muito familiar, para quem vem da classe média brasileira, e também ambígua.
Mas, daí, eu tenho essa vivência. Da empregada que traz os netos para o trabalho, porque a filha está ocupada, foi ao médico, fazer qualquer outra coisa. Essa relação é ambígua e, historicamente, muito rica e interessante. Os ecos da escravidão estão totalmente presentes. Quando eu era criança, minha mãe chegou do cabeleireiro e disse que tinha duas mulheres conversando. Uma estava sem empregada. E perguntou à amiga se tinha alguma recomendação. E a outra disse: “Eu tenho uma: ela é preta, mas é limpinha, e pode ser uma boa solução para você”. Em 1982, duas mulheres ainda falarem isso, 90 anos depois do fim da escravidão, de certa forma era compreensível, mas inaceitável em termos históricos. Então, tudo isso, para mim, é fascinante, porque vivemos em uma sociedade ainda muito presa a muita coisa velha, embora a gente esteja na modernidade, em um mundo mais supostamente evoluído. Mas isso vai passando de geração em geração. E aí você coloca no filme, e as pessoas captam, porque é óbvio. Está na vida de todo mundo.
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