Dentro do mundo capitalista, tudo que for tóxico e existir por tempo suficiente poderá ser ressignificado como objeto de desejo. Talvez este seja um dos resumos possíveis para Barbie, o esperado longa de Greta Gerwig, certamente o maior sucesso recente no marketing cinematográfico. Mesmo nós, mulheres que fomos criadas brincando de Barbies sabendo que elas eram o pior tipo de exemplo para as meninas, parecemos estar sedentas para entrar no universo barbiecore que passou a circular nos últimos meses (e talvez seja também por isso, essa nossa tendência a “absolver” produtos culturais problemáticos, que Barbie chegue a nós na mesma época em que Xuxa é redesignada como cult por seus antigos baixinhos).
Era tanta expectativa em torno do lançamento que é quase impossível que Barbie fosse uma obra-prima. Mas, certamente, não se pode dizer que este não seja um filme muito divertido, e – sim, altamente favorável à Mattel, a fabricante da boneca. De todo modo, a grande riqueza dele está no roteiro sagaz, escrito por Greta Gerwig e seu marido, o também cineasta Noah Baumbach, que é repleto de tiradas cabeçudas direcionadas ao público da dupla – como na cena, por exemplo, em que um Ken tenta impressionar uma Barbie fazendo uma comparação entre Stephen Malkmus, do Pavement, com Lou Reed.
Ou seja: este não é um filme para as crianças – não que haja alguma restrição, mas pelo simples fato de que elas não acharão muita graça. É claro que há toda uma história bem acessível e meio óbvia de empoderamento feminino, que deve agradar os mais jovens ou os menos afeitos às afetações cinéfilas (a piada sobre O Poderoso Chefão é uma das mais engraçadas do filme).
Mas Barbie, na verdade, fala menos da nocividade do produto milionário da Mattel e opta em mirar a um alvo mais delicado: os homens – sobretudo, os brancos.
O mundo (im)perfeito da Barbielândia
O roteiro de Barbie é perfeitamente construído para atiçar a nostalgia, ficando bem claro que há ali as mãos e a mente de quem já brincou muito com a boneca. Tudo está lá: as roupas cor de rosa, as casas todas abertas, os Corvettes conversíveis, as roupas colecionáveis, os pés permanentemente inclinados da Barbie, a falta de genitália, o recurso de “voar” para ir de um lugar a outro nas mãos das donas. As Barbies, como sugere a cena de abertura – uma brincadeira divertida referenciando 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick – foram uma verdadeira revolução.
O roteiro de Barbie é perfeitamente construído para atiçar a nostalgia, ficando bem claro que há ali as mãos e a mente de quem já brincou muito com a boneca.
Até então, as meninas brincavam com bonecas que eram apenas seus bebês, sedimentando nelas aos poucos um modelo apenas de existência: ser mãe e dona de casa. Mas quando a loiríssima Barbie chega em cena, com seu maiô e batom vermelho, ela propõe outro parâmetro para essas crianças: o de entrar no mundo do trabalho e ser o que elas quiserem (contanto que sejam lindas, femininas e magras, claro).
A “Barbielândia”, o ambiente apresentado no filme em que vivem as bonecas em suas várias versões, é um mundo sem nenhum conflito, onde tudo é bonito, alegre, colorido e sorridente. Só que – essa é a primeira sacada de Greta Gerwig – neste universo, as mulheres são o centro, e os homens simplesmente são um apêndice delas.
Quando o mundo perfeito da Barbie começa a ruir, a Barbie Estereotípica (Margot Robbie) precisa descobrir o que fazer para voltar à inércia de sua vida perfeita. Ao pesquisar, ela acaba chegando na Barbie Esquisita (Kate McKinnon) – uma sacada incrível: a Barbie estragada pelas meninas que cortaram seu cabelo, queimaram, quebraram suas pernas – para encontrar uma solução. E ela vem ao estilo Matrix: Barbie Estereotípica tem que optar por permanecer no sonho ou conhecer a verdade.
É claro que não há exatamente uma escolha, e a Barbie Estereotípica acaba indo parar no mundo de “verdade”, o dos humanos, em que há sentimentos conflitantes e sujeitos mal-intencionados. Junto a ela, cola em seu Corvette o seu “namorado” Ken (Ryan Gosling, adorável no papel), um apaixonado meio banana que simplesmente não sabe quem é sem a cara metade.
A trama se desenrola a partir daí – quando Barbie toma altas doses de decepção sobre a vida lá fora, e Ken começa a vislumbrar uma existência bem melhor para ele e seus amigos. E essa miragem surge a partir do contato com um conceito: patriarcado (que Ken, hilariamente, acredita ter a ver com homens e cavalos).
As consequências disso, como pode se imaginar, são terríveis. Mas essa ideia é concretizada no filme de maneira leve e divertida – e talvez se possa dizer aqui que Greta Gerwig acerta em fazer circular uma mensagem poderosa (a de que as mulheres têm em mãos a chave para se libertar de homens abusivos) em forma de uma grande piada.
Ok, Barbie com certeza é uma obra blockbuster feita sob medida para vender milhões de produtos cor de rosa. Também diria que o filme poderia muito bem ser condensado em meia hora a menos. Ainda assim, isso não tira o brilho da criação absolutamente inventiva de Gerwig, que acrescenta em sua já bela filmografia mais uma obra memorável.
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