O filme Máquina do Desejo, documentário de Joaquim Castro e Lucas Weglinkski, carrega o tempo todo uma poderosa mensagem: a cultura de um país não é mera perfumaria, mas sim um dos espaços em que a transformação política é mais manifesta. O longa-metragem, que sintetiza os 60 anos do Teatro Oficina, estava previsto para estrear em outubro nos cinemas brasileiros, mas teve seu lançamento adiantado como uma justa homenagem ao legado de Zé Celso Martinez Corrêa, morto agora em julho.
O esforço faz sentido, pois traz aos brasileiros e brasileiras a oportunidade de entrar em contato com uma história que talvez nem todos conheçam – sobretudo os mais jovens. Feito a partir da colagem de centenas de depoimentos de artistas, e de trechos de filmes de vários realizadores icônicos (como Luiz Rosemberg Filho, Eryk Rocha e Zé do Caixão), Máquina do Desejo funciona como uma espécie de esforço didático de levar ao público a importância histórica, cultural, arquitetônica, ecológica, mas sobretudo política da longa trajetória de um espaço gestado por muitas mãos e mentes.
O filme é organizado em ordem cronológica, o que traz o didatismo necessário para apresentar o Teatro Oficina às novas gerações. Começa abordando o contexto pessoal de Zé Celso crescendo no interior de São Paulo e o momento em que passa a organizar um grupo de teatro, enquanto ainda cursava Direito.
Mas o célebre diretor e ator não é o centro dessa história: ele opera mais como um condutor para que um grupo incrivelmente orgânico, que reuniu algumas das almas mais criativas surgidas neste país em sete décadas, pudessem juntas cultivar uma companhia e um espaço que vão muito além do teatro – e que, em vários momentos, operou como um matriarcado comandado por atrizes.
Um legado para além do teatro
Todas as falas presentes em Máquina do Desejo evidenciam que esta é uma história que vai muito além do teatro.
A partir daí, vamos entrando em contato com pontos centrais do Oficina, o que envolve a elaboração de suas peças mais memoráveis, suas referências e sua capacidade de sintetizar uma luta em forma de arte.
Todas as falas presentes em Máquina do Desejo evidenciam que esta é uma história que vai muito além do teatro em si, mas da convicção de que, como cita Zé Celso Martinez em certo momento, a cultura é uma ferramenta potente para a transformação social.
Isto se evidencia, por exemplo, nas exposições que o filme faz sobre alguns clássicos do Oficina, como O Rei da Vela e Pequenos Burgueses, ou no momento em que o diretor entrevista pessoas na rua que reclamam de serem abandonadas pelo governo. “Pode falar, isso é filme do Glauber Rocha”, emenda Zé Celso ao ser confrontado pelo cidadão.
A guerra desempenhada aqui, por vezes, é literal: o longa reserva uma boa parte para passar pelos momentos de censura às peças do Teatro Oficina e à perseguição aos atores e atrizes, incluindo descrições de cenas de torturas a que vários deles foram submetidos. Dentre os momentos mais fortes do filme, está o depoimento no qual Zé Celso descreve quando apanhou em um pau de arara e, ao mirar profundamente nos olhos do torturador, viu-o humanizar-se novamente.
Outro momento de foco na luta é o longo trecho que recapitula o esforço pela preservação do espaço do Oficina, à época em que o local foi ameaçado de demolição por conta de uma compra na região feita pelo grupo Silvio Santos. Vai se tornando cada vez mais evidente que há aqui uma batalha pela preservação do humano versus o concreto, o pulsante versus o maquínico, o sexual versus o financeiro. Mas este é um enfrentamento alegre. De modo muito inspirado, Zé Celso diz: “vai ter uma guerra. Mas tem que lutar com uma felicidade guerreira. É a luta do palhaço contra o palácio”.
Com uma carreira vitoriosa em festivais (dentre as láureas, estão o Prêmio de Público de Melhor Longa no 29.º Festival Mix Brasil e Melhor Edição de Longa no 26.º É Tudo Verdade), Máquina do Desejo chega em momento propício para honrar a carreira de um grande revolucionário da cultura brasileira – que, ao lado de outros nomes, criou não um teatro, mas uma entidade maior que si mesmo.
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