O filme O Marinheiro das Montanhas é uma obra profundamente pessoal, marcada pelo olhar sensível do cineasta cearense Karim Aïnouz, cuja filmografia inclui títulos premiados como Madame Satã, Praia do Futuro e A Vida Invisível. O documentário empreende uma jornada de autoinvestigação que parte de Marselha, cidade no litoral sul da França, e atravessa o Mar Mediterrâneo até Argel, a capital da Argélia, no ano de 2019.
Conforme a história se desenrola, essa aventura se converte em um road movie que nos leva através das paisagens interiores do país do norte da África, direcionando-nos à aldeia natal do pai do diretor, aninhada nas majestosas montanhas argelinas. Essa narrativa evoca outro filme de Aïnouz, Viajo porque Preciso, Volto porque Te Amo, híbrido de ficção e documentário, no qual da mesma forma somos guiados pela perspectiva de um narrador em deslocamento físico, mas também emocional. O roteiro de O Marinheiro das Montanhas é do curitibano Murilo Hauser, que também assinou a adaptação de A Vida Invisível para o cinema.
Essa mesma viagem pela paisagem norte-africana serviu como fonte de inspiração para Nardjes A., outro documentário de Aïnouz que estreia nos cinemas simultaneamente a O Marinheiro das Montanhas. No entanto, Nardjes A. concentra-se na atmosfera de revolta que Aïnouz testemunhou em Argel durante os protestos contra o presidente Abdelaziz Bouteflika, que permaneceu no poder por duas décadas, de 1999 a 2019, e buscava um quinto mandato.
Marinheiro das Montanhas: carta à mãe
Em O Marinheiro das Montanhas, Aïnouz escreve uma carta a sua mãe, Iracema, que morreu em 2020. O filme torna-se uma meditação sobre as raízes do cineasta, os tortuosos caminhos da vida e uma tentativa de reencontrar uma parte de sua história que ele, de certa forma, guardou por mais de cinco décadas.
Desde o início, Aïnouz mantém um diálogo constante com a figura materna, mas sua câmera parece inquietantemente buscar o pai, Majid, em todos os cantos do país. Afinal, ele está na terra natal dessa figura paterna, raramente presente ao longo de sua vida. A mãe, de origem brasileira, cruzou o destino com Majid durante seus estudos nos Estados Unidos, e a paixão os uniu. Desse encontro, Karim veio ao mundo. Entretanto, a política entrou em cena. No Brasil, o golpe de 1964 e a subsequente ditadura. Na Argélia, a guerra pela independência e a sua conquista após uma luta sangrenta. Majid partiu para nunca mais voltar à vida de Iracema e Karim.
O Marinheiro das Montanhas, portanto, não é uma tentativa de reconciliação por meio do cinema, pois, no fim das contas, essa paz nunca vem.
A separação parece ser a questão que mais atormenta o menino que se tornou cineasta e o que ele reencontra na Argélia. É a mente de uma criança que imagina as razões por trás dessa separação. Em sua carta, Karim questiona o que Iracema sentiu. O que, afinal de contas, ela teria experimentado ao longo de sua vida? Ele nunca se atreveu a lhe perguntar isso em vida.
Na Argélia, Karim tenta se mesclar aos locais, chegando até mesmo a cortar o cabelo à moda deles, numa tentativa de camuflagem. Contudo, quando vai ao cemitério local e se depara com os túmulos de seus parentes, todos marcados com o sobrenome Aïnouz, ele foge sem se despedir de ninguém. “Tive medo de cair em uma daquelas tumbas e nunca mais sair das montanhas”.
O Marinheiro das Montanhas, portanto, não é uma tentativa de reconciliação por meio do cinema, pois, no fim das contas, essa paz não vem. A triangulação entre pai, mãe e filho nunca se completa. Essa melancolia, essa falta, segue atormentando Karim e mais: é elemento indissociável da obra do diretor. Estão presentes em praticamente todos os seus filmes.
O mais precioso em O Marinheiro das Montanhas é a busca de Karim, que atravessa mar e montanhas na tentativa de desvendar o que ele desconhece, e materializar uma terra, uma cultura, que só existiam antes em seu imaginário, a despeito de carregá-las geneticamente em seu sangue. Ele precisa se autoinvestigar para concluir que sua dor não tem cura, mas, de certa forma, também alimenta a arte que faz. Seu cinema é prova disso.
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