Deus é o regente do universo? A criação da vida e o seu fim, a morte, seriam responsabilidade dele?
Nem sempre.
Na obra do poeta Murilo Mendes, um dos principais nomes da poesia moderna brasileira, e no disco Castelos e Ruínas do rapper BK, tido por muitos como o grande álbum de rap brasileiro em 2016, o artista é o principal responsável pelas angústias do mundo.
Assim ocorre no poema “Aproximação do Terror” e na música “Caminhos”, em que o artista é colocado como o responsável por organizar as forças do universo.
No artigo “Os jasmins da palavra jamais”, incluído no livro Leitura de Poesia, organizado por Alfredo Bosi, Murilo Marcondes de Moura observa que no poema de Mendes o artista se torna um poeta-regente do próprio tempo e um agente de cura do mundo.
Interpretando as palavras do próprio Murilo Mendes, Marcondes de Moura mostra que “todo poeta autêntico, de acordo com essa visão, estaria impregnado do ‘sentimento do tempo’ e teria a capacidade de conservar intacto o conhecimento das origens e fins da humanidade, assim como teria o dever de torná-las públicas, sobretudo em tempos de degradação”.
Esses tempos dizem respeito de maneira mais específica à guerra, período bastante e bem explorado por Murilo Mendes usando uma visão catolicista e Carlos Drummond de Andrade que o fez de maneira marxista.
E é na contemporaneidade, nas batalhas do cotidiano, que o MC BK torna essa tensão mais próxima e, também, distante de nós.
A longitude se dá, sobretudo, por conta dos elementos cósmicos presentes em “Caminhos”, na qual o próprio cantor se coloca como o responsável por essa ordem.
“Eu sou querido no céu, eu sou amado no inferno / Entre o errado e o certo prefiro ter os dois por perto / Eu sou a luz, sou a sombra, sou o perigo que ronda / Eu sou a arma da guerra, sou o mar e suas ondas / Ignorado por anjos, desabafei com demônios / Separei brigas dos 2, eu sou Deus, sou humano”.
Como se vê, o eu lírico não é apenas humano, mas sim o próprio Deus, que diante das forças malignas e benignas precisa deixar a indecisão e tomar para si a responsabilidade, como ocorre nos versos seguintes em que ele se reafirma como uma figura divina:
“Eu sou o luxo, sou lixo, eu sou o limpo e o sujo / Nem duas caras, nem máscaras, nem em cima do muro / Eu nadei contra a maré, chão quente, fui a pé / Passos descalço, eu sou Jó, sou Tomé / Trago amor trago a paz, trago milagres e júbilo / Eu sou o equilíbrio, eu mato, roubo e destruo”.
‘Eu tentei me afogar no ódio / pensar que a terra não era um bom lugar / E a esperança que ele não move o mundo / Estamos prontos pra recomeçar’. BK – Caminhos
Essa posição do artista como governante da terra explorada por BK é também o que se anuncia na primeira estrofe de “Aproximação do terror”:
“Dos braços do poeta / Pende a ópera do mundo / (Tempo, cirurgião do mundo):”
Essa responsabilidade do poeta que tem a ópera do mundo em seus braços é também vista mais a frente, em que o escriba talha as palavras e o planeta:
“O ouvido soprando sua trompa / Percebe a galope / A marcha do número 666.
Palpo a Quimera / O tremor / E os jasmins da palavra ‘jamais’”.
E se o artífice aparece em ambas as composições como o regulador do mundo, é ele o responsável pela vida e pela morte, elementos que geram a tensão nas duas obras.
Sobre esse assunto Marcondes de Moura observa o seguinte sobre Murilo Mendes:
“Ora, entre o espetáculo cósmico da destruição total (a morte do mundo) e a inserção nele do sujeito singular (a própria morte) cria-se uma tensão enorme. O poeta registra tudo de uma posição destacada – do alto (“Dos telhados abstratos”), mas envolvido ao extremo, pois o espetáculo observado inclui a própria destruição. A “aproximação” da morte individual também participa da integridade do texto, estabelecendo assim um novo dinamismo para este poema que se monta a partir de centro em fuga. Quando o leitor acredita ter capturado um sentido mais fixo, este, sem ser excluído, é logo reconduzido a outro” (P. 117).
Nesse sentido, enquanto a tensão entre a morte do universo e a do sujeito passam por todo o poema de Murilo Mendes, em BK ela aparece em trechos opostos, já que enquanto a primeira estrofe se dedica às forças superiores, a segunda é voltada aos conflitos internos:
“Eu tive que aprender, a viver por aqui / Eu conheci o mal, confesso que eu gostei / Minha visão mudou, quem eu sou? Me perdi / Gostei de enlouquecer, mas tive que voltar / Para não causar dor, para não sentir dor / Tive que suportar, querendo capotar / Tive que apostar, ninguém pra acreditar / Virei ao meu favor, derrubei tabuleiro / bueiro pro estado, pro rato travesseiro”.
E se o falecimento está presente em ambos, o elemento que pode simbolizá-la também se repete: o revólver. O objeto que pode ser um instrumento utilizado para tirar a vida de alguém tanto na guerra quanto na “paz” assim aparece em “Aproximação do terror”:
“O abismo bate palmas, / A noite aponta o revólver. / Ouço a multidão, o coro do universo, / O trote das estrelas / Já nos subúrbios da caneta: / As rosas perderam a fala. / Entrega-se a morte a domicílio”.
Enquanto nos versos do poeta mineiro de Juiz de Fora a morte vai de um plano amplo para chegar até o sujeito, na música do integrante dos coletivos Nectar Gang e Bloco 7 o movimento é oposto, mostrando o eu lírico como alguém que decide guardar a sua arma para, no final, questionar o abandono dos deuses, posição na qual o mesmo havia se colocado nos versos iniciais:
“Eu entoquei minha arma, de tanta raiva que tava guardada / Na real o que não faltava era alguém pra usá-la / Eu já cansei de gastar / minha energia com coisas que eu sabia que não ia andar / Eu acredito que os Deuses abandonaram o barco / Saíram voado ao ver o descontrolado / Estado de calamidade solto entra as cidades e a sua finalidade”.
Dessa forma, BK se utiliza do sentimento de tempo que Murilo Mendes prega para demonstrar o conhecimento sobre a origem e o fim em um mundo deteriorado, mostrando que embora a guerra tenha passado, a angústia parece ser a mesma ainda que sejam os poetas os regentes do tempo.
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