Rubem Alves tem um conceito bastante interessante sobre o fazer artístico (e sobre muitas outras coisas).
No livro Ostra Feliz Não Faz Pérola, o pedagogo, poeta, cronista, contador de história, ensaísta, teólogo, acadêmico e psicanalista apresenta em texto de mesmo título a sua perspectiva para a criação artística. De acordo com ele, a arte se cria da mesma maneira que uma ostra usa a sua defesa para se livrar da aspereza da areia. Assim, a partir do sofrimento causado pelo grão, o molusco o envolve de uma substância lisa, brilhante e redonda. E é a partir do martírio que nascem as lindas pérolas.
Essa é a interpretação que Alves dá também para o fazer artístico: “A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas. Beethoven – como é possível que um homem completamente surdo, no fim da vida, tenha produzido uma obra que canta a alegria? Van Gogh, Cecília Meireles, Fernando Pessoa…”.
É dessa forma, partindo da dor para criar a beleza, que dois exemplos podem ser citados no rap nacional: o do curitibano Fantoxi e do niteroiense Black Alien.
Por meio de seus discos lançados no ano passado é que ambos conseguiram transformar o seu calvário em obras bastante marcantes e que ora se igualam e ora se opõem uma à outra.
O principal ponto convergente é o fato de tratarem das drogas, problema pelo qual um e outro passarem e conseguiram superar para nos entregar o registro das rochas que o incomodavam por dentro e por fora.
‘Nesse mundo de injustiça / Cobiça cega o homem / Moralista se fere / Pois é o que mais / consome / Um copo só / Só mais uma dose passa / meu karma / Meu drama / a trama embaça / daqui não leva nada / Só fica confuso / Um passo pra conquista / Isso é um luxo / Metamorfose é vida / O mundo tem a dose / A overdose instiga / Mas ela tem sua posse / É tanto amor e ódio que o corpo não aguenta / o excesso de rancor faz com que a dor te renda / Abismo é hospício pra metamorfose oculta / O medo te segura enquanto a alma tá na fuga’ Fantoxi – AFétai
Uma questão de “saúde mental”, noção à qual Rubem Alves também se dedica no mesmo livro e o desmistifica: “As pessoas ajustadas são indispensáveis para fazer as máquinas funcionar. Mas só as desajustadas pensam outros mundos. A criatividade vem do desajustamento. Imagine que nossa sociedade é louca. As evidências dizem que sim. Estar ajustado a essa sociedade é estar ajustado à sua loucura. Então, há um tipo de “saúde mental” que é uma manifestação de loucura. Mas aqueles que são lúcidos, que percebem a loucura da sociedade e sofrem com ela, desajustados, são os que verdadeiramente têm saúde mental”.
E dentro dessa adversidade da qual os MCs tratam vem a oposição, já que talvez pudéssemos dizer que enquanto Black Alien produz uma pérola branca, Fantoxi produziu uma pérola negra.
Isso ocorre porque no disco Sem Limites, um dos melhores CDs de rap curitibano em 2015, a visão empregada pelo fundador do coletivo Akimemu e integrante do 14 beats é bastante sombria e parece olhar para o passado obscuro que agora deixou para trás.
Nele, a vida pregressa de contato com as drogas e tudo que ela acarreta (medo, depressão, abandono, desilusão) pode ser encarada como uma catarse. O disco, assim, marca o encerramento dessa fase. É como se Fantoxi cantasse para efetivamente se livrar do que passou e afirmar perante si e os outros que aquela não é mais a vida que quer.
A presença da figura da morte é o que demonstra o quão sombria foi a sua relação com as drogas, o que se materializa por meio de faixas como “Acende a Luz ou se Esconde”, que pelo próprio título demonstra quais são os caminhos possíveis a seguir. Mas ainda que apresente na obra o lado obscuro, o caminho escolhido por ele foi o mesmo de Black Alien, que em Babylon by Gus Vol. II – No Princípio Era o Verbo procura olhar para frente e tratar do assunto como algo superado. Assim, o ex-Planet Hemp parece falar do assunto para afirmar a sua recuperação, usando o disco produzido dentro de uma clínica de reabilitação para poder seguir em frente e dizer: “Eu vou conseguir”.
E ele efetivamente consegue, afinal, o próprio lançamento do disco após um hiato de 11 anos já se mostra como um evento de superação, assunto sintetizado pela faixa “O Estranho Vizinho da Frente” que trata da sua luta e a de muitas pessoas que enfrentam os mesmos dilemas e usam o “Só por hoje” como lema.
Da mesma maneira, Fantoxi demonstra que a luta se dá em “pequenos” passos em “Primeiro Copo de Álcool”, em que mostra que uma fagulha pode colocar a perder a caminhada de quem decidiu que “admitir é o passo para se reconstruir”, raciocínio que também está presente em Black Alien na track que divide com Luiz Melodia (“Quem é você?”) e que se mostra como um dos pontos altos do disco. Entretanto, a música que parece dirigir o questionamento a um terceiro talvez seja uma resposta do próprio Gustavo Black Alien, já que é nela em que assume ter conflitos de ordem psicológica e diz ser tentado o tempo todo.
Black Alien x Black Alien
Mas, se os conflitos estão presentes na cabeça, os conflitos musicais estão muito bem resolvidos para Black Alien, que consegue repetir o sucesso do anterior, o clássico Babylon By Gus Vol. I – Ano do Macaco.
Essa preocupação em apresentar um trabalho a altura, inclusive, foi um dos fatores que fez com que o disco demorasse, uma vez que algumas músicas tiveram que ser refeitas ao perceber que soavam como antigas enquanto deveriam manter a tendência sem perder a essência.
O resultado é um CD que apresenta uma outra visão de mundo muito menos explosiva que a do anterior, mas que consegue manter o alto nível. Essa perspectiva é percebida em diversos momentos do disco que, começando pelo começo, traz em sua introdução a posição de um irmão que aconselha, diferentemente do Black Alien antigo que logo prometia transferir para outro o seu acerto de contas.
Está também presente o amor, como antes, mas se anteriormente a demonstração era por meio da sexualidade em “Perícia na Delícia”, agora o tema se apresenta como uma relação mais familiar e tranquila, mesmo tom adotado em “Homem de Família”, em que o eu lírico se vê como um avô e valoriza os pequenos momentos familiares, mas que não deixa de lado a visão crítica ao mostrar “A diferença entre o trabalho e a mão no revólver / Ás vezes o trabalho é a mão no revólver”.
E se antes a violência se apresentava como uma questão que parte do individual em “Caminhos do Destino”, passava a ser social em “Estilo do Gueto” e “Primeiro de Dezembro” e se encerrava com um clima apocalíptico em “América 21”, “Na segunda vinda” e “From Hell”, agora há a tentativa de impedir a guerra não por meio dela, mas evitando a violência contra si e seus pares.
Dessa forma, o volume 2 de Babylon By Gus faz com que a bereta continue cada vez mais lírica.
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