Sempre que passo pelo bairro da minha infância, a coisa que mais me impressiona é a ausência de terrenos baldios. Porque não foi sempre assim, eu me lembro bem da grande quantidade de campinhos e pistas de bicicletas que fazíamos nesses terrenos que não eram ocupados por ninguém. E de repente, hoje já não existe nenhum deles, há sempre uma casa, um prédio, uma igreja evangélica. É a especulação imobiliária, é claro, hoje as coisas já cresceram de tal forma que ninguém mais pode se dar ao luxo de manter um terreno vazio. Acham que um terreno em que não for construído nada é um terreno improdutivo. Tem tanta gente querendo morar, querendo abrir o seu negócio, que não se admite mais nenhum espaço em vão.
Sem falar que esses lugares costumam ter mato alto, lixo amontoado, ratos, baratas… Até desovas de cadáveres acontecem em terrenos baldios. E, no entanto, sou um dos que lamentam o seu desaparecimento. Porque eu cresci tão próximo a esses lugares que hoje já não consigo imaginar como é que as crianças conseguem viver longe deles. Em substituição, criam quadras de concreto dentro de um condomínio, pintam linhas, círculos e dizem para as crianças “brinquem assim”. No terreno baldio, a gente fazia como quisesse… Lembro que muitas vezes, nós mesmos, crianças que éramos, nos dispúnhamos a roçar esses lugares, íamos até uma fábrica buscar serragem para fazer as linhas do campo, construíamos as traves de madeira. E o mato alto também não era problema para as trilhas que fazíamos de bicicleta – deixava tudo ainda mais divertido.
Do jeito que está, só vai existir terreno baldio nas crônicas do Nelson Rodrigues.
Ah, havia muitas maneiras de se brincar nos terrenos baldios, não precisávamos de muito, alguns não tinham mato, eram um simples descampado de terra, e nessa terra nós fazíamos estradas para nossos carrinhos, nossos ônibus de madeira. Como será que as crianças de nossos dias fazem estradas para os seus carrinhos? Já não há mais muita terra, tudo é um duro piso de concreto.
Aqui perto da casa onde moro hoje, ainda há um terreno desocupado. É um terreno grande, feito de grama e cheio de ondulações. Não está dando lucro a ninguém. E, no entanto, a população tem tirado proveito dele. No final de semana, as pessoas vão até lá para empinar pipa. Já vi crianças e cachorros simplesmente correndo, rolando, aproveitando a liberdade daquele espaço. Mas tenho motivos para temer. Esse terreno já foi muito maior, até que construíram um hipermercado que levou boa parte dele. Não sei quanto tempo esse terreno resistirá até virar condomínio, estacionamento, ou um prédio qualquer.
Porque olha, do jeito que está, só vai existir terreno baldio nas crônicas do Nelson Rodrigues – dizia ele que certas verdades só podem ser ditas num terreno baldio, à meia-noite, sob a luz de archotes e na presença de, no máximo, uma cabra vadia. Ah, meu Deus, não temos mais onde dizer as verdades atrozes. Onde estão os deputados, vamos fazer uma PEC prevendo a obrigatoriedade de terrenos baldios em áreas residenciais, não posso crer no desenvolvimento de uma cidade que não contemple, em seu projeto urbanístico, a existência de terrenos vazios e desocupados, mas que exercem plenamente a sua função social. Reforma agrária já.