Se bem me lembro, só havia duas formas de se comportar nas aulas de Victor Folquening: ou em completo alvoroço, em meio a alguma polêmica, geralmente associada à existência de Deus, ou no mais perfeito silêncio, acompanhando com total atenção as histórias que ele contava. Em geral, eram histórias de bastidores do jornalismo ou dos submundos de Ponta Grossa. Ele alternava tão bem doses de suspense e de humor que era difícil não se deixar envolver pela sua narrativa.
E foi dessa habilidade de contar histórias que me lembrei ao ler este seu antigo conto, premiado, feito ainda na adolescência, resgatado (e ilustrado) por seu amigo Benett. Em linguagem ágil, direta, com várias referências que revelam a sua bagagem cultural, Victor conduz uma narrativa densa, mostrando muito do conteúdo existencial que havia por trás da ironia do professor. O desfecho, triste, trágico, deixa uma sensação de impotência parecida com a do dia em que ele nos deixou – subitamente, com destino à escuridão.
Numa manhã de escuridão
por Victor Folquening
Gruber falou-me sobre os patos. Disse que, apesar de todo mundo conhecer os patos, poucos já viram um. Fiquei pensando: será mesmo que existem pessoas que nunca viram um pato? Acho difícil.
Conversamos sobre o Peru, também. Gruber é arqueólogo, filósofo e historiador. Sempre quis ser as três coisas, mas não pude, por isso sinto-me contente (e um pouco indignado) por aprender com ele. Disse que é um país muito bonito e desenvolvido. Um dia conhecerei o Peru!
Aquela noite ainda conversamos sobre o folk, esportes e mulheres.
Chovia muito. Gruber olhou no relógio, era mais de meia-noite e meia e resolveu partir.
Foi até a porta, abriu. O vento transformou Gruber naquela figura clássica do cinema noir, com o sobretudo voando em minha direção. Jogou o cigarro e falou:
-Eu esqueci de falar, andei lendo um livro maravilhoso, do Federico Gorshov. – e foi embora.
Naquela noite dormi muito mal. Não saía da minha cabeça o nome de Federico Gorshov.
No dia seguinte fui até a Biblioteca Pública. A mulher gorda do fichário procurou, procurou e disse que não tinha nada “desse tal Federico Gorshov”.
Vocês não imaginam a curiosidade que Federico Gorshov me despertou! Passei, inexplicavelmente, a pensar e falar somente nele.
Todo meu tempo livre procurava. Fui em todos os colégios, museus, bancas, livrarias e nada que indicasse a existência do misterioso autor.
Numa tarde saía do último sebo da cidade, templo de raridades, e vi Gruber do outro lado da rua entrando em um táxi.
Gritei. Ele acenou para mim. “E o livro de Gorshov?”, perguntei. Numa Manhã de Escuridão!, ele respondeu rindo. Tentei correr atrás do táxi, mas foi inútil. Bom, pensei, pelo menos já sei o nome do livro: NUMA MANHÃ DE ESCURIDÃO.
Com já devem ter adivinhado, esse dado não me foi útil.
Minha vontade de ler o livro cresceu a um ponto insuportável. Comecei a perder tudo o que tinha na procura: carro, casa, roupas.
Eu viajava para toda parte e pagava preços absurdos pelos lotes de livros antigos de viúvas do tipo “não-quero-nada-que-me-lembre”.
Meu irmão peguntou por que simplesmente eu não pedia o livro para o Gruber. Como? Desde que o vi pela última vez, na frente daquele sebo, não tive mais notícias. Já tinham se passado seis meses desde então.
Minha vontade de ler o livro cresceu a um ponto insuportável. Comecei a perder tudo o que tinha na procura: carro, casa, roupas.
Fiquei sabendo que ele fora para o garimpo, aventurar-se.
Emprestei dinheiro e parti em busca de Gruber. Porém, nunca mais o vi. Do longínquo garimpo ele se embrenhou nas selvas quase impenetráveis, aquela cuja trilha sonora é “Ritual Selvagem”, de Les Baxter.
De volta à Ponta Grossa, encontrei-me no habitual Café, num crepúsculo molhado, com Dália. O lugar me lembrava um título: A Melancolia dos Fast-Foods, livro que, aliás, nunca li.
Dália era feia, mas tinha um certo charme. Usava uma roupinha escarlate com capuz que parecia um modelo de Sandra Dee, em filmes ambientados em Nova York.
Era uma mulher relativamente inteligente, mas não chegava a ser desagradável. José de Alencar escreveu que as jovens inteligentes muitas vezes são pedantes. Dália era pretensiosa mas não era pedante.
Perguntou-me porque estava tão abatido (não me sentia exatamente assim) e tão magro (infelizmente sempre fui muito magro!).
Contei-lhe o que aconteceu, desde patos, Peru e folk até a minha obsessão doentia pelo sinistro, fascinante, misterioso e distante Federico Gorshov. Apresentei a história com uma riqueza incrível de detalhes que chegou a impressionar.
A princípio ela não pareceu espantada, mas depois começou a fumar. Pela primeira vez! Olhou para a rua, raíz da chuva e do vento de agosto, olhou para mim e riu nervosamente. Eu não disse nada, ela falou de filmes e a noite se firmou. Foi só.
Lá pelas seis da manhã de sábado, acordou-me com um telefonema.
– Preciso dizer-lhe algo… – ela hesitava- sobre Gruber, sobre Federico Gorshov…
Acordei imediatamente e totalmente. Dália prosseguiu:
– Não quis falar ontem, não tive coragem, porém não consegui dormir… Você precisa saber! Federico Gorshov não existe… VOCÊ É GRUBER! Criou toda essa coisa de conversas, do livro para dedicar sua vida a algo na sombra de uma pessoa que você sempre quis ser e não pôde! Encare a realidade, nunca vai encontrar um verdadeiro sen…
Bati o telefone. Fui para a cozinha. Tomei um café e pulei pela janela do apartamento.
Foi numa manhã de escuridão.
Victor Folquening foi jornalista e professor universitário, com passagens no jornal Gazeta do Povo, e nos cursos de Jornalismo da Universidade Positivo e UniBrasil Centro Universitário. Autor do livro O Jornalismo é um Humanismo, resultado de sua pesquisa de mestrado em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Faleceu em 2012, em Curitiba, época em que cursava Doutorado em Ciências da Comunicação (Unisinos).
Benett é jornalista e cartunista dos jornais Gazeta do Povo e Folha de São Paulo, além de autor de vários livros, como Amok: Cabeça, Tronco e Membros, e Benett Apavora. Amigo de infância de Victor Folquening, Benett é responsável pelas ilustrações originais deste texto e pelo resgate do conto, vencedor do primeiro lugar do Concurso de Contos do Colégio Sant’Anna em 1990, quando Victor tinha 17 anos.