No ensaio “Death Takes a Holiday”, publicado pela editoria de “Viagem” do jornal The New York Times, na edição de 29 de agosto de 2004, a crítica literária Marilyn Stasio faz uma brincadeira: sugere um tour ao redor do mundo, cujos guias seriam os protagonistas das séries de romances policiais mais populares assinadas por autores vivos das mais diversas nacionalidades, todos já traduzidos em inglês e lançados nos Estados Unidos
Ao chegar ao Brasil, depois de citar escritores como José Latour (Cuba), Deon Meyer (África do Sul) e Qiu Xiaolong (China), e seus respectivos detetives ou investigadores, Marilyn escreve que “espera encontrar o inspetor Espinosa em uma de suas caminhadas meditativas pelo Rio de Janeiro”, referindo-se ao delegado de polícia criado por Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Passados 24 anos desde seu “nascimento”, no premiado romance O Silêncio da Chuva, o investigador, morador do Bairro Peixoto, enclave formado por algumas poucas ruas no coração de Copacabana, chega a seu décimo segundo caso, desvendado em A Última Mulher, que o escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza lançou em 2019 pela Companhia das Letras. É seu 12º romance – Berenice, de 2005, também adaptado para o cinema em 2018, é sua única obra de ficção sem a presença do personagem.
Espinosa é um policial atípico, que no primeiro livro tinha pouco mais de 40 anos e hoje já passa dos 60. Apaixonado por livros, é um rato de sebos, que alimentam com regularidade sua enorme biblioteca sem estantes – os volumes, organizados em fileiras que vão se empilhando, formam paredões de papel encadernado no seu apartamento, onde cultiva uma existência frugal e solitária.
Décimo segundo romance policial do escritor carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza, ‘A Última Mulher’ reencontra o delegado Espinosa às voltas com o submundo da prostituição.
Divorciado e pai de um filho adulto, que vive nos Estados Unidos e surgiu como personagem em Céu de Origamis (2009), nono romance policial de Garcia-Roza, o delegado segue vivendo sozinho, apesar de manter, há dez anos, um relacionamento estável com Irene, uma mulher mais jovem, independente e bissexual.
Em A Última Mulher, Espinosa, já começa a sentir os sinais do tempo: não parece tão convicto de sua solteirice e agora passa mais e mais noites ao lado de Irene. Continua praticamente intacta, no entanto, sua marca registrada: a habilidade de possivelmente graças à sua vasta experiência como leitor imaginar múltiplas possibilidades de conexão entre os fatos, essencial na solução dos crimes que investiga, verdadeiros quebra-cabeças.
Desta feita, o investigador se vê mais uma vez diante de um caso intrigante. Ratto é um cafetão do bairro boêmio da Lapa, no coração do Rio de Janeiro, Ao lado de seu sócio, Japa, faz uma pequena fortuna todo mês até que chama a atenção de um policial violento, que resolve chantageá-lo, querendo dele arrancar boa parte de seus ganhos com o meretrício, A solução, então, é desaparecer. Escondido num muquifo em Copacabana, ele conhece Rita, uma jovem prostituta jovem com quem se envolve romanticamente. Essa felicidade, contudo, dura pouco e o casal passa a ser perseguido pelo tira corrupto.
Espinosa, velho conhecido de Ratto desde os tempos de inspetor da 1ª DP, no Centro, entra no caso quando mulheres que trabalham para o cafetão em seu novo território são assassinadas e Rita, a tal última mulher que dá título à novela, pode ser a próxima vítima. Como o rufião mais uma vez some, o delegado traz a jovem para sua casa e com ela estabelece uma interessante relação que beira o paternal, até lhe dando indicações de leitura.
Garcia-Roza foi professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e também é autor de oito livros sobre Psicologia e Filosofia, suas áreas de formação. Hoje aos 84 anos, lançou O Silêncio da Chuva quando tinha 60, e agora se dedica apenas à literatura. Seu olhar psicanalítico se faz presente nos seus livros, tanto na construção dos personagens, sempre muito bem delineados, tridimensionais e factíveis, quanto nas motivações por trás dos crimes. A Última Mulher, uma de suas histórias mais curtas, não foge a essa regra.
O autor busca humanizar Ratto e, principalmente, Rita, sem cair na armadilha no maniqueísmo, dando-lhes ambiguidade e imprevisibilidade. São personagens limítrofes, que Garcia-Roza estrategicamente coloca ao lado da lei, como heróis pouco prováveis. Rita, na melhor tradição da literatura noir, fortíssima influência na literatura do escritor carioca, é uma femme fatale desconstruída. E é só lendo para compreender.
Em tempo: O Silêncio da Chuva foi recentemente adaptado para o cinema pelo diretor Daniel Filho (de Se Eu Fosse Você), com Lázaro Ramos no papel de Espinosa. O filme deve ser lançado ainda neste ano.