Há exatas duas semanas, eu vivi um daqueles dias capazes de redefinir, em questão de horas, minhas pseudo certezas sobre a vida. Por mais ou menos dez dias, eu vinha me digladiando com uma laringite intermitente, que não parecia me dar trégua e que, talvez, eu não estivesse levando tão a sério quanto deveria. Dificuldade para engolir, tosse seca, perda parcial de voz. Esses sintomas se acumulavam, mas após uma consulta ao otorrinolaringologista, e exames invasivos nas narinas e na laringe, o diagnóstico parecia fechado e, bastante medicado, achei que fosse melhorar. Não foi o que aconteceu.
Naquela terça-feira à tarde, tudo ficou pior: tosse, falta de ar, dor de garganta e, de repente, uma febre fora de hora – 38,5 graus. Após oito meses de pandemia, eu seria muito tolo se, a despeito de todos os meus medos, não me fizesse a pergunta inevitável: “Será que estou com Covid-19?”.
Eu havia voltado a trabalhar presencialmente há algumas semanas, o que rompeu, no meu cotidiano, meses de isolamento social e, mesmo procurando tomar todos os cuidados possíveis, estar no mundo, andar pelas ruas, compartilhar espaços públicos e no trabalho, acabam sendo situações de maior ou menor risco, dependendo, inclusive, da sorte. E, naquele momento, quando eu me percebi doente, decidi ir para o hospital e descobrir, de uma vez por todas, o que estava acontecendo comigo.
Embora não mais do que dez minutos de carro separem minha casa do ponto atendimento do Marcelino Champagnat, essa distância provou ser, simbolicamente, de milhares de quilômetros. Percebi que, dentro de meu apartamento, onde havia passado os últimos meses, eu estava protegido por uma espécie de bolha não apenas sanitária. Ao colocar os pés no hospital, eu me dei conta de que todo meu conhecimento acumulado sobre a doença não havia me preparado para a possibilidade de me tornar, dali para frente, um paciente.
Devido aos meus sintomas, todos de alguma forma relacionados à Covid, fui imediatamente orientado a me dirigir ao atendimento exclusivo para casos da doença, no qual se entra apenas sozinho. Todo e qualquer acompanhante tem de ficar do lado de fora – e com razão. Para que expor alguém saudável ao risco de contágio? Mas essa sensação de estar sozinho, confesso, me assustou bastante.
Apos medir a temperatura e a pressão com uma auxiliar de enfermagem, pediram que eu esperasse até que um dos médicos pudesse me atender. Foi quando eu me dei conta de onde estava: em uma ala hospitalar totalmente destinada a receber pacientes com suspeita ou já diagnosticados com Covid. Olhei ao redor e eram muitos que aguardavam um médico como eu. Naquele momento, umas duas dezenas de pessoas: jovens na casa dos 20 anos, homens e mulheres um pouco mais velhos, pessoas maduras, entre os 40 e 60, e vários idosos, iam se acumulando. Não paravam de chegar, tomando todas as cadeiras e poltronas disponíveis, devidamente separadas umas das outras para evitar o contágio.
Quando, depois de mais ou menos uma hora, talvez 90 minutos, fui atendido por uma médica, coberta da cabeça aos pés, apenas os olhos à mostra, fui tomado por um misto de alívio e pavor. Após as perguntas de praxe, que tentei responder com a precisão de um jornalista que sabe a importância de réplicas detalhadas, mas ao ponto, ela pegou nas minhas mãos e as apertou com as pontas de seus dedos enluvados. Foi quando disparou uma frase de abismo, que me tirou o chão: “Você está com as mãos de Covid”.
Quando, após mais ou menos uma hora, 90 minutos, fui atendido por uma médica, coberta da cabeça aos pés, senti um misto de alívio e pavor. Após as perguntas de praxe, que tentei responder com a precisão de um jornalista que sabe a importância de respostas detalhadas, mas ao ponto, ela pegou nas minhas mãos e as apertou com as pontas de seus dedos enluvados. Foi quando disparou uma frase de abismo, que me tirou o chão: ‘Você está com as mãos de Covid’.
Fiquei mudo. Foi como receber uma sentença de morte à queima-roupa, ainda que eu tenha consciência do exagero dramático dessa afirmação. Como não estava me sentindo bem, e, sim, tinha muitos sintomas relacionados à doença, olhei para minhas mãos com raiva, como se elas me tivessem de alguma forma traído. “É um padrão que a gente vê se repetir”, explicou a doutora.
Nas horas seguintes, fiz um exame de sangue e o PCR, teste que detecta o vírus na fase aguda da doença, identificando a presença do RNA do vírus SARS-CoV-2 em amostra obtida por meio de swab (cotonete) na mucosa nasofaringe (nariz e garganta). O resultado do primeiro apontou infecção, mas o do segundo, específico, para a Covid, só sairia dois dias mais tarde.
Enquanto aguardava ver de novo um médico, o que só ocorreu por volta de quase cinco horas depois de minha chegada ao hospital, vi e ouvi muita gente que, como eu, trazia angústia nos olhos, à espera de um diagnóstico mais preciso, senão definitivo. Muitos tossiam bastante, outros nem tanto, alguns tomavam soro e até ensaiavam um cochilo. Uma estranha comunhão nos unia naquele momento de incerteza e medo. Até receber alta do médico da noite, que receitou vários medicamentos para tratar de meus sintomas, ainda enigmáticos, eu olhei várias vezes para as minhas mãos, como se elas soubessem de algo que eu desconhecia. Será que elas tinham a resposta?
“Se o PCR der positivo e seus sintomas piorarem, você volta. Ainda bem que você não precisa de internação. Não temos mais leitos hoje e teríamos que encontrar algum outro hospital para você.” Com essa frase, eu parti. Feliz de poder voltar para casa. porém ainda com medo e alívio.
O PCR, cujo resultado saiu dois dias depois, deu negativo e, hoje, estou quase bom. Mas algo aconteceu dentro de mim naquela terça-feira, que eu não sei muito bem descrever. Lembro de Cazuza, um dos poetas da minha juventude, e um de seus versos mais cruéis: “Eu vi a cara da morte e ela estava viva”.
Aqui fora, a guerra continua.