Quando Emmanuel Carrère se encantou por Eduard Limonov a ponto de escrever um livro inclassificável sobre sua trajetória, passou boa parte da narrativa digladiando com os próprios sentimentos, a cada nova jogada de moral baixa do escritor soviético. Como era possível que um sujeito tão encantador pudesse ser tão desprezível ao mesmo tempo?
A verdade é que nada é muito fácil na Rússia. Sei disso porque tive minhas querelas com o coração quando conheci Boris, meu anfitrião em Moscou. Residente de um cubículo em Fylovski Park, que ele mesmo chama de “um acampamento militar”, Boris é toda a complexidade do homem pós-soviético. Nacionalista ferrenho e com um grande apreço pela cultura russa – em especial a literatura de Mikhail Bulgakov, um dos nossos únicos pontos de intersecção – guarda em si um antissemitismo que consegue ser ainda maior do que sua homofobia. Resultado, talvez, de sua adolescência vinculada a movimentos neonazistas. À menor sugestão de minha parte de que talvez estivesse perturbando sua rotina, respondia com “por acaso eu tenho cara de judeu?” ou “você está numa casa russa, não está em uma casa judia”.
Careca, de porte atlético e barba ruiva por fazer, o russo que me recebeu em sua casa tem desculpas para todos os seus desvios morais.
Careca, de porte atlético e barba ruiva por fazer, o russo que me recebeu em sua casa tem desculpas para todos os seus desvios morais. Ostenta uma bandeira confederada na parede, e jura de pé junto que é por causa de O Vento Levou, um de seus livros favoritos junto com A Cabana do Pai Tomás – responsável por lhe verter lágrimas dos olhos; o antissemitismo é explicado de acordo com Dostoievski. Se considera um discípulo de seus ensinamentos, em especial no ódio pelo povo de Israel. Contato com homossexuais e miscigenação de raça lhe parecem conceito abomináveis. A ele, só interessa os russos, e a Rússia. Os russos que estão na Rússia.
Sua afabilidade não transmite os cacoetes morais que tanto me constrangeram. Boris fala firme, mas docemente. Bebe vodca no jantar como qualquer russo, mas se abstém do sexo e jura que sequer sente falta nos sete anos em que não dividiu sua cama com mulher nenhuma. Trata seus hóspedes como verdadeiros príncipes. Como quase todo russo, é um cristão devoto e tem uma predileção quase militaresca pela ordem e pela limpeza. Discursa a favor da cultura, conhece o centro de Moscou como a palma de sua mão, incluindo os lugares mais secretos, e debate longamente com seus amigos ainda mais obtusos que afirmam que livros são o ópio de países atrasados.
Aos poucos, porém, deixa sua faceta negra sair. Aos poucos, em sua paranoia com bueiros de rua (não me deixava pisar em nenhum deles, jurava que eu me acidentaria e perderia uma parte da perna por causa da ineficiência russa para a construção civil), ou de uma vez só, em seu ódio mortal por chechenos e caucasianos, tipicamente os mafiosos da cidade ou bandidos comuns, como os que o espancaram e o roubaram de certa feita. Não está sozinho em nenhum desses pensamentos.
Contrário a Putin, sabe que pode pegar até dois anos de prisão por postar qualquer coisa contra o presidente russo no VK, a rede social do país. Não se considera um radical, porque odeia os radicais, e dribla a polícia em hábitos contraventores, como beber na rua e invadir prédios abandonados em busca de um terraço que lhe forneça uma vista incrível da cidade que tanto ama. Boris não é uma pessoa fácil, e parece mais fácil condená-lo de uma vez do que tentar entender sua personalidade.
A cabeça russa funciona alheia aos nossos conceitos de civilidade, às nossas noções de diversidade e respeito, ao nosso mundo ocidental tão perfeitinho. Ele deixa entender que só é assim por causa de seus vizinhos de país – povos arruaceiros desde os primórdios da história – e sabe que sua mentalidade ainda será a ruína do país, porque reconhece que o código masculino da Rússia não faz nada pelo país a não ser os recordes por morte de briga de faca e porrada de rua. Não sei do que Boris irá morrer. Não sei nem de quê irá viver.