Algumas discussões recentes, principalmente no campo da literatura fantástica brasileira, têm reacendido a velha questão da “literatura de entretenimento” versus a “literatura crítica”, que enobrece a alma. Mas afinal, a literatura deve formar um leitor “crítico” e “reflexivo”? A suposta literatura de mercado, que vende, é sempre prior? De onde surge essa discussão?
A literatura não é a única das artes que abriga tais debates. A dicotomia, que já me parece ultrapassada, permeia desde a música e o teatro até linguagens mais recentes, como o cinema e as séries de televisão. No entanto, ao observar a estruturação da classe intelectual moderna, veremos as razões pelas quais tal dicotomia se encontra desgastada.
Quando o poder da Igreja deixa de servir como apoio às dominações monarquistas, um espaço vago surge nas estruturas de poder social. De maneira quase independente (ou seja, menos vinculado ao poder real), os intelectuais passam a ocupar gradualmente essa esfera e sobrevivem até aos momentos como a Revolução Francesa.
De maneira sucinta, o que essa classe faz, até meados do século XX, é separar a boa arte da ruim. Para isso, as culturas antes vistas como diferentes e criadas por Deus passam a ser vistas de acordo com ideais civilizatórias: as mais avançadas, como as europeias, e as outras, bárbaras e atrasadas. Como um pastor cuidando de seu rebanho, os críticos passam a guiar os incultos rumo ao futuro, ao progresso.
A boa e a má arte eram, então, aquelas que se aproximam ou distanciam desse lugar ideal. Fazendo uma síntese sobre o momento e puxando o contexto para o questionamento inicial, o primeiro ponto a ser levantado é o controle social estabelecido.
Ao estabelecer essa hierarquia estética, as questões sobre quem poderia criar, onde poderia criar e como poderia criar se tornaram latentes. Por isso, um dos alvos deslegitimados por essa classe foi a da cultura popular.
Esse ataque visava não só “tirar o atraso dessas culturas locais”, mas deixar claro quem domina na sociedade. Em um exemplo trazido por Bauman em seu livro Legisladores e Intérpretes, as orquestras populares de rabeca e fagote foram expulsas das igrejas e substituídos por organistas profissionais. Isso significava não só a condenação da cultura popular e da classe média pelas elites intelectuais, mas o estabelecimento de um local e horário em que a apresentação seria feita com autoridade (isso te lembra de alguma proposta de redação ENEM?).
Mudando a velocidade para fast-forward, o poder intelectual deixou a burguesia e a classe média por bastante tempo encabulada, que se entendia como uma parcela da população sem refinamento artístico e que o dinheiro as levaria do lugar atrasado para o ponto futuro civilizatório.
No entanto, aos poucos um fator passa a se estabelecer e dominar na relação de legitimação dos produtos culturais: o mercado. De grosso modo, no momento em que a obra considerada ruim tornou-se lucrativa (ou vice-versa), não só a concepção de qualidade começou a variar, mas a própria organização social se encontrava de outra forma. Com a entrada desse novo elemento, a classe intelectual não mais se organizava para legitimar o poder do Estado, mas era este Estado que se organizava para manter o Mercado como algo funcionando e de maneira saudável.
Sendo assim, o crítico literário se via numa situação em que não só conquistava sua independência em relação à necessidade de legitimação de poderes, mas também se tornava um elemento irrelevante, já que a prioridade era o número de vendas e não mais a opinião de uma classe social.
No entanto, aos poucos um fator passa a se estabelecer e dominar na relação de legitimação dos produtos culturais: o mercado.
“Tudo bem, mas estamos falando dos críticos! O que tem a literatura com isso?”. Calma, estamos chegando lá. Quando o mercado se tornou a instância legitimadora, pensadores se debruçaram sobre as obras acusando-as de servirem para as massas, para a alienação e o consumo. De maneira grosseira, o condicionamento da literatura enquanto produto traria, em si, a desvalorização da literatura enquanto material que enobrece o espírito humano.
Você pode pensar: “Ah, mas isso faz sentido. Livros que vendem muito precisam ser diluídos, nivelados por baixo”. Será? Peguemos, em um levantamento rápido, os títulos mais vendidos no ano segundo a Publish News. Em uma rápida olhada pelas abas de Ficção e Não-Ficção, sabe o que é possível concluir? Nada. Nomes como George Orwell, Edgar Allan Poe, Lovecraft, Amanda Lovelace e Jojo Moyes compartilham o mesmo espaço em uma das páginas, enquanto Laurentino Gomes, Michelle Obama, Stephen Hawking, Gisele Bündchen e Yuval Noah Harari dividem a outra.
Além dos nomes nas listas, nenhuma outra informação. Não é possível saber se há vendas por conta de estudos, se o livro auxiliou a criar ou afastar um leitor do seu hábito de leitura. O que há no primeiro contato é a (pré)concepção de autores mais ou menos legitimados para exercer e entrar no mundo da escrita, agentes com maior ou menor presença em espaços canônicos. A partir daí, o que sobra são leituras subjetivas (e inconscientemente acordadas) entre seus amigos, professores, colegas, ídolos, etc.
O retrato que procuro traçar não é o da defesa de todo e qualquer tipo de livro, mas a qualificação desse debate e a conscientização dos elementos que compõem essas leituras. Qualificar um texto como ruim partindo do pressuposto de que ele é feito para vender enquanto produto, como algo que é entretenimento, é uma premissa fraca: enquanto objeto cultural supérfluo para a sobrevivência, desde os livros mais teóricos até as fantasias mais fantasiosas, as narrativas sempre serão uma forma de entretenimento para o ser humano; enquanto objeto em um sistema capitalista, será entendido como produto.
Por fim, a proposta do texto é que se entenda que há outros caminhos para encontrar qualidades e defeitos em uma obra e proporcionar um debate rico. Diversas leituras possíveis têm se organizado de acordo com questões sociais, estruturais ou simbólicos e estruturado suas comunidades interpretativas viáveis. Por isso, entenda o que você busca na literatura, abrace o subjetivo e intuitivo, deixe de lado o argumento das massas: politize sua visão sobre a arte.
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