Traição, mortes e vingança. Poderíamos dizer que essas são as bases da novela As brasas, do húngaro Sándor Márai, traduzida a partir de sua versão italiana por Rosa Freire d’Aguiar para a Companhia das Letras. E, partindo dessa premissa, também poderíamos dizer que é um novelão no melhor estilo global, sem nenhuma novidade e com muitos clichês. Porém, Márai não teria a fama de ser um dos maiores prosadores da língua magiar se assim fosse, e por isso é uma obra que surpreende por sua trama relativamente simples – friso relativamente, pois a profundidade dela apenas se mostra com o avanço da leitura – e pela beleza da escrita, e aí podemos também dar um imenso crédito à tradutora. Apesar de a tradução ter sido feita a partir de outro idioma que não original (falaremos disso em breve, em outro texto), é inegável a maestria do texto em português.
Henrik, velho general húngaro aposentado, após um passeio pela adega do vinhedo próximo à sua propriedade, volta para casa e recebe uma mensagem que o deixa inquieto. Sem esperar muito, ordena que seu motorista vá buscar um convidado ilustre para o jantar daquele dia. Em seguida, chama a governanta Nini (que merece um comentário à parte mais adiante) para lhe dar instruções precisas de como será aquele jantar. Esse convidado é Konrad, um amigo dos tempos da escola militar, com quem Henrik tem muitas contas a acertar. E, durante a espera até a hora do jantar, as lembranças inundam o casarão onde vive o general. As doces lembranças de sua mais tenra idade, a mãe francesa, o pai, também general do império austro-húngaro, e a amizade que desenvolve com Konrad. Porém, um hiato nessa amizade perturba o general. [highlight color=”yellow”]”Quarenta e um anos, disse afinal com voz enrouquecida. E quarenta e três dias. Foi esse o tempo que passou”. [/highlight] E essa espera termina naquele dia quente de verão.
Por mais que as próprias personagens não enxerguem dessa maneira, o mundo ao redor vê a relação de Henrik e Konrad como um encontro de almas, algo que vai além de uma simples amizade juvenil.
Mais que amigos, friends
O jeito que Sándor Márai explica a amizade entre homens nessa obra com um quê de homoerotismo, mesmo que extremamente velado, mesmo que nunca explícito. Por mais que as próprias personagens não enxerguem dessa maneira, o mundo ao redor vê a relação de Henrik e Konrad como um encontro de almas, algo que vai além de uma simples amizade juvenil. Em alguns momentos, enquanto o narrador traz à tona a infância e a juventude de Henrik e a entrada de Konrad em sua vida como se fossem suas memórias, a visão dos “outros” invade as páginas:
“… a mãe francesa os seguiu muito tempo com o olhar. Depois se virou para Nini e disse com um sorriso: “Finalmente um casamento que deu certo.” (p. 35)
Uma amizade tão forte que vence também o bullying, como vemos na página seguinte:
“No colégio os outros logo pararam de zombar daquela amizade, com a qual se habituaram como se fosse um fenômeno natural. Agora só se referiam a eles pelos dois nomes, como se faz com os casais. Mas não debochavam.”
Com o avançar das páginas, enxergamos que talvez pudesse haver mesmo uma relação mais íntima entre os rapazes, porém a época, o colégio militar e outros fatores fizeram com que Henrik e Konrad virassem irmãos, como “gêmeos univitelinos”, outra imagem usada por Márai para descrever a relação dos rapazes. Porém, um incidente vai separá-los por quarenta e um anos.
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Nini
Por mais que sua atuação dentro do romance seja curta, a governanta Nini rouba a cena em muitos momentos. Nonagenária, com uma aparência mais velha que o tempo, ela é a guardiã de Henrik. Desde a infância ela cuida do general, sai em sua defesa e não se cansa de protegê-lo. Quando ele dá ordens para que o jantar seja idêntico ao de quarenta e um anos antes, ela diz: “Prometa-me não se comover”.
Temos a impressão, quando Nini surge, de que ela tem uma força arrebatadora, mesmo muito velhinha, que o casarão do general só funciona, só vive porque tem essa alma para movê-lo. E não apenas o casarão, mas o próprio general, por mais severo e velho que esteja, vive muito em função de Nini, que aos olhos de todos é apenas a governanta do lugar, mas é mais que isso. O que se comprova no último parágrafo do livro.
Krisztina: o terceiro elemento
As brasas existe apenas porque existe um terceiro elemento na relação tempestuosa de Henrik e Konrad: Krisztina, a bela mulher do velho general e grande amiga de seu amigo. Aliás, quem apresenta Henrik à Krisztina, filha de um violinista de sua Polônia natal, é o próprio Konrad. E outro dado que dá um sabor à taciturna figura de Konrad: ele alega ser parente de Chopin. E em sua longa exposição dos fatos, como se faz em um julgamento, Henrik acaba dizendo que ninguém é parente de Chopin impunemente.
A música tem um papel fundamental na compreensão da figura de Konrad. Tímido, retraído, pobre, o pequeno polonês descobre um mundo à parte dentro da música. A música tira Konrad do eixo, transforma-o, subverte seus desejos, torna-o incapaz de ouvir o mundo de fora. Isso faz com que ele se ligue à mãe de Henrik, francesa moderna e artística, e também à Krisztina, filha de artista e que carrega no sangue a liberdade. Esses dados são o molho necessário para que o general tire suas conclusões quanto à amizade de Konrad.
Quase um monólogo
Não é para desanimar ninguém que digo que As brasas tem, em quase 50% de suas páginas, um monólogo de Henrik. Por mais que o velho general desembeste a falar, quase sem deixar espaço para que Konrad se expresse (e, de qualquer forma, Konrad não faz questão de falar muito), suas falas são muito bem-escritas, pontuadas pelas reações dos dois senhores, pelas intempéries e por comentários um tanto irônicos do narrador. É quase a exposição dos fatos que levaram até aquele jantar e à conversa entre eles, que se converte no julgamento de Konrad por seu sumiço de quarenta e um anos, mas não apenas por ele. Somos apresentados a alguns fatos e acontecimentos que servem como plot twists dessa longa noite em que dois idosos lavam a roupa suja, ou melhor, um idoso lava a roupa suja acumulada, enquanto o outro apenas observa.
Verossimilhança
Quando lança o romance, Márai tem 42 anos, um jovem se comparado aos personagens que criou. Porém, suas descrições da velhice são muito acertadas, ao menos batem com o ideário de velhice que todos temos, inclusive os idosos. Os comentários de Henrik oscilam entre o rancor e a calmaria da idade avançada, as dores de ter vivido demais, visto e sofrido demais com o desprendimento de quem está a um passo do outro lado.
Confesso que peguei o livro e não botei muita fé no início. Cheguei ao As brasas pelo excelente Rebeldes, também lançado pela Companhia das Letras. E me vi enredado pelas construções bonitas, pelas frases impactantes e pelo enredo misterioso e improvável daqueles dois senhores.
Ao fim do livro, temos um posfácio excelente de Marinella d’Alessandro, tradutora da versão italiana do livro, que conta um pouco da vida de Sándor Márai, traçando paralelos com a história de Henrik e Konrad. Vale a pena.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]AS BRASAS | Sándor Márai
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Rosa Freire d’Aguiar;
Tamanho: 172 págs.;
Lançamento: Dezembro, 1999.
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