A autoficção com comentários de classe é um gênero incensado pela literatura nos tempos atuais. Tendo como principais expoentes os franceses Annie Ernaux e Édouard Louis, trata-se de um território artístico cada vez mais explorado por escritores que aproveitam da pena para trazer corpo ao seu desconforto por terem nascido em certa classe social e depois, inesperadamente, ter migrado para outra. O processo de “subir na vida”, afinal, é enfrentado sempre com algum trauma e culpa.
É impossível não pensar em Ernaux ou Louis quando se lê A Boba da Corte (editora Fósforo, 2025), de Tati Bernardi – e ela mesma assume estas referências a todo momento. No entanto, é importante afastá-la dos dois autores (e de outra obra brasileira que também se insere nessa seara: O Que É Meu, de Jose Henrique Bortoluci), uma vez que a escritora oxigena o gênero com aquilo que a diferencia: o humor.
Em sua obra, assumidamente biográfica, Tati Bernardi narra a sua trajetória de menina crescida na zona leste de São Paulo, no bairro do Tatuapé, que, ao seguir a carreira na publicidade, aos poucos migra para o lado oeste da cidade. Não se trata meramente de uma mudança geográfica, mas de contexto. Ao trocar o Largo São José do Maranhão pela rua Maranhão, no rico bairro de Higienópolis, a escritora passa a conviver com pessoas bem mais sofisticadas que seus parentes, descendentes de italianos que falam alto e acham que esforços intelectuais são coisa de quem não conhece o trabalho de verdade.
Mas distanciar-se das origens não é tarefa fácil, e nem é possível despir-se completamente do pesar pelos que ficaram para trás. O gosto é agridoce, pois as elites – entendidas aqui como aquelas cuja grana veio do berço – não aceitam assim facilmente os emergentes.
Deste modo, A Boba da Corte se articula como uma espécie de “vingança” de Tati sobre os tantos herdeiros que passa a conhecer depois de sua migração. Gente que, como ela sugere, fez muito pouco com aquilo que recebeu de mão beijada – enquanto ela, por outro lado, ralou intensamente (e segue ralando) para chegar onde está. Fala-se aqui de uma self-made woman, que claramente estaria muito acima dos “aristogatos”.
Há generosas camadas de orgulho nestas páginas (principalmente por um louvor ao trabalho sobre-humano que a levou até ali), mas que se justifica por aquilo que mais importa: a entrega de uma boa experiência literária ao leitor. E isso diz respeito às sacadas que esta boba da corte é capaz de recortar de seu entorno – mas não apenas isso.
Um comentário social em ‘A Boba da Corte’

Em um ensaio clássico sobre um conto de Gustave Flaubert chamado “Um Coração Simples”, o semiólogo Roland Barthes concluiu que a força do realismo do grande escritor francês se dava por conta de um recurso que ele chama de pormenor supérfluo. Ele define assim os elementos narrativos que operariam como uma espécie de “enchimento” à trama, uma vez que aparentemente não possuem finalidades específicas na história.
Tati assume-se em seu romance como uma “malandra” que sorrateiramente se insere nos jantares de Higienópolis para depois vir narrar aos reles mortais o que viu.
No caso do conto de Flaubert, é um metrônomo que aparece em cima do piano e que não é amarrado um sentido (uma espécie de função narrativa que justificaria a sua inserção na narrativa). Para Barthes, estes elementos causariam aquilo que ele chama de efeito de real – a ilusão de estarmos diante da realidade tal como ela é, para além da linguagem.
Empresto o conceito de Barthes para ressaltar o que acredito ser uma qualidade desta obra: a sagacidade demonstrada por Tati Bernardi ao recortar pequenos elementos alegóricos que explicitam a sua realidade, e que acabam por ilustrar a cisão entre sua família e os ambientes que passa a circular.
São símbolos que são trazidos às páginas à medida em que a leitura avança: a centralidade da televisão na casa da família, sempre sintonizada nos programas populares; os tios “pegadores” que circulam em carros no Tatuapé e sobrevivem de fazer rolo; os pratos Vista Alegre que se tornam emblema de seu desejo de pertencer; o fora que ela e uma amiga levam numa festa em um shopping, por parecerem pobres.
Astuta como um trickster – o arquétipo mitológico do “pregador de peças”, presente em várias culturas –, Tati assume-se em seu romance como uma “malandra” que sorrateiramente se insere nos jantares de Higienópolis para depois vir narrar aos reles mortais o que viu. Isso se dá, obviamente, de forma ácida, compartilhando recortes hilários, captados por sua lente. O momento mais engraçado, em minha opinião, é a cena do namorado que tem uma experiência transcendental com um morador em situação de rua, mas cuja mesma generosidade não se direciona à namorada classe média.
Tudo isso torna A Boba da Corte um livro fluido e divertido, daqueles que se lê em poucos dias, regozijando-se com esta narradora, algo irresponsável, que aponta e grita: o rei está nu. Resta por fim a curiosidade de saber o quanto tudo isso repercutiu entre as pessoas reais aqui retratadas por Tati.
A BOBA DA CORTE | Tati Bernardi
Editora: Fósforo;
Tamanho: 104 págs.;
Lançamento: Abri, 2025.
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