Basta dar uma folheada num livro do Valêncio Xavier para que um nome nos venha à mente: Marcel Duchamp. O conceito de ready made (aquele negócio de deslocar elementos do cotidiano para o mundo das artes), popularizado a partir de sua obra A Fonte, é algo que me parece bem relevante para compreender o trabalho e parte das influências do escritor quase-curitibano (ele nasceu em São Paulo, mas adotou a terra dos pinheirais como sua casa durante muito tempo).
Assim como em O Mez da Grippe, seu livro mais famoso, Rremembranças da menina de rua morta nua, lançado pela editora Companhia das Letras e infelizmente já esgotado, é uma obra de uma criatura com mãos de escritor e com cabeça de cineasta. O resultado é uma desconcertante mistura de imagens e palavras.
Diferentemente de um livro ilustrado (ou de pelo menos boa parte deles), aqui a imagem não é um reforço, uma reprodução ou reimaginação visual daquilo que foi escrito anteriormente, pois ela é a própria composição da história em si. Tudo isso não de uma maneira óbvia e didática, mas sim com forte inclinação para o inusitado que surge a partir de discrepâncias visuais e linguísticas (em alguns momentos, o autor usa a grafia do português arcaico, por exemplo).
Rremembranças da menina de rua morta nua, lançado pela editora Companhia das Letras e infelizmente já esgotado, é uma obra de uma criatura com mãos de escritor e com cabeça de cineasta.
Utilizando uma infinidade de recursos que podem parecer um tanto quanto díspares, tais como recortes de jornais, fotografias antigas, figurinhas, ilustrações de livros didáticos, bilhetes, verbetes enciclopédicos, pinturas e imagens de TV, Valêncio Xavier conta histórias que muitas vezes abdicam de grande volume de texto escrito por ele mesmo, já que a própria justaposição das colagens aos poucos vai formando um enredo. É como se o artista tentasse remodelar o caos a partir dos fragmentos de uma explosão.
O livro é composto por sete histórias que apontam para uma visão bastante pessimista a respeito da vida. Tal como Dalton Trevisan, o autor explora basicamente só o lado negro da força, retratando as grandes cidades com suas bocas imundas e enormes, cheias de dentes podres.
Na história mais impactante e que dá título ao livro, temos a criança que foi abusada e encontrada morta num parque de diversões, dentro de um barraco que seria o túnel do Trem Fantasma. A história é real, ocorreu em Diadema, São Paulo, e foi repercutida pela imprensa. O que Valêncio Xavier faz de modo genial é reconstruir o caso dessa menina de modo a desnudar o circo midiático (ele utiliza, além dos jornais, imagens e frases dos apresentadores do Aqui Agora, do SBT, em especial o Gil Gomes, um Datena dos anos 90) e mostrar, através principalmente de repetições, toda a sórdida exploração comercial da violência.
Na obra de Valêncio Xavier, a imagem não é uma pausa na narrativa, ela é a própria narrativa. Isso não quer dizer que ali a imagem meramente substitui a linguagem escrita, principalmente se levarmos em consideração, por exemplo, que o recorte da matéria do jornal não deixa de ser uma imagem composta por caracteres que compõem palavras, que compõem um discurso, que por sua vez compõe imagens na cabeça do leitor.
O que o autor faz é tentar quebrar os parâmetros de recepção gráfica e verbal aos quais estamos condicionados, desconstruindo noções de significado e significante, e construindo a partir dessa espécie de deslocamento linguístico uma forma diferente de fruir a literatura.
Como nos faz falta um autor desta grandeza.
RREMEMBRANÇAS DA MENINA DE RUA MORTA NUA | Valêncio Xavier
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 144 págs.;
Lançamento: Setembro, 2006.