Em Morra, amor, somos convidados a adentrar um terreno inóspito, indesejável: o mundo interior de uma mulher que está em crise. Aparentemente, ela encara o puerpério, aqueles meses após a chegada de um filho em que uma mulher se torna, simultaneamente, uma mãe e uma ex grávida – os hormônios da gravidez despencam e a sensação que se vivencia é próxima da loucura.
Neste romance forte da escritora argentina Ariana Harwicz, não há espaço para relatos ternos de maternidade. O que temos em nossa frente é a digressão de uma mulher que se destroça aos poucos, envolta em seus humores flutuantes e seus paradoxos. Ela ama e odeia o filho; deseja e detesta o marido; é protetora mas, num surto, dá um tiro de espingarda no cachorro; tem um caso extraconjugal, mas é acometida pelo tormento louco de ciúme pelo companheiro. Todo esse seu processo interno é colocado para o leitor de forma crua e mesmo odiosa. Somos como testemunhas e cúmplices de uma pessoa que se desfaz, sem rodeios na fala, e que por isso nos parece ignóbil; por outro lado, ela incomoda justamente por ser humana exatamente como nós – apenas assume aquilo que nem sempre estamos dispostos a assumir.
Finalista do prêmio Man Booker Prize de 2018, Morra, amor é a obra da estreia dessa escritora, e ganhou bastante repercussão justamente pela coragem de trazer luz aos sentimentos considerados pouco nobres e que se afastam de um ideal da maternidade – como se toda mãe e todo pai imediatamente se transformasse em um indivíduo com alguma iluminação. Os casos de morte de filhos pelos pais nos ferem por transpor essa barreira do tabu – pois ao progenitor só é permitido ter pulsões de amor e acolhimento em relação ao filho e à vida.
A espiral rumo à demência faz com que o livro se aproxime de outras obras que também trazem mulheres como protagonistas.
A narradora de Morra, amor, pelo contrário, é franca em suas elucubrações. Ela menciona que era mais feliz antes do filho, e se ressente da cotidianidade de sua vida de dona de casa no interior da França. “Eu queria ter Egon Schiele, Lucien Freud e Francis Bacon como vizinhos, assim meu filho poderia crescer e se desenvolver intelectualmente vendo que o mundo em que o pus é um pouco mais interessante que só abrir claraboias através das quais nada se vê”, narra Harwicz. Há até algum espaço para um certo humor negro, como quando a personagem mistura a monotonia de sua rotina e a tragédia que se espreita: “com uma das mãos seguro meu nenê, com a outra a espátula. Com uma das mãos preparo a comida, com a outra me apunhalo. Que bom ter duas mãos!”.
A espiral rumo à demência faz com que o livro se aproxime de outras obras que também trazem mulheres como protagonistas. Morra, amor me fez pensar em A redoma de vidro, romance semiautobiográfico de Sylvia Plath, e no filme Anticristo, de Lars Von Trier, em que uma mãe (Charlotte Gainsbourg) se enluta (e enlouquece) após a morte do filho, ocorrida enquanto pai e mãe faziam sexo – revestindo-se, por isso mesmo, de um tom de punição divina. Em em relação à última obra, Morra, amor divide ainda um elemento importante, que é a imagem da natureza e da floresta como um espaço inerente ao selvagem feminino – não por acaso, ambas as mães de livro e filme se imbricam nesse local para se encontrar e se perder.
A experiência com Morra, amor é dolorida: não se assemelha em nada a uma leitura leve para distrair ou passar o tempo. O que vemos é o sofrido movimento de uma mãe que transpõe a fronteira que separa a sanidade da loucura. Uma obra corajosa de uma autora bastante promissora.
MORRA, AMOR | Ariana Harwicz
Editora: Instante;
Tradução: Francesca Angiolillo;
Tamanho: 140 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2019.