Tenho grande prazer em vasculhar sessões de comentários, de notícias sobre escândalos políticos a resenhas dos últimos [tie_tooltip text=”Blockbuster é uma palavra de origem inglesa que indica um filme (ou outra expressão artística) produzido de forma exímia, sendo popular para muitas pessoas e que pode obter elevado sucesso financeiro. Um blockbuster também pode ser um romance ou outra manifestação cultural que tenha um elevado nível de popularidade.” gravity=”n”]blockbusters[/tie_tooltip] (sim, esse hobby envolve grandes doses de masoquismo).
Recentemente, numa dessas aventuras em busca da podridão da internet, me deparei com uma discussão acalorada entre fãs de Game of Thrones. Após alguns espectadores mais perspicazes apontarem certas inconsistências narrativas nos últimos episódios da série, como a estranha velocidade com que as personagens e corvos mensageiros agora cruzam vastos continentes, fanboys ultrajados partiram em defesa dos roteiristas: “Ah, você tá cobrando coerência numa série com dragões e zumbis? Faça-me o favor!”.
Não se trata, infelizmente, de um argumento incomum. Seja com Harry Potter, as HQs do Batman ou o universo cinematográfico Marvel, os devotos das megafranquias tentam de tudo para justificar erros narrativos crassos e continuar acreditando que suas obras favoritas são perfeitas – e assim recorrem à falácia mencionada acima. A raiz deste raciocínio equivocado é o desconhecimento de um princípio básico que forma um dos mais cruciais alicerces de toda a ficção: a [highlight color=”yellow”]suspensão da descrença[/highlight].
Cunhado pelo poeta Samuel Coleridge em 1817, o termo se refere ao mecanismo por meio do qual autores capazes de tecer narrativas verossímeis e de interesse humano conseguem fazer com que seus leitores [highlight color=”yellow”]acreditem no impossível[/highlight]. Em outras palavras, a boa escrita, não importa o quão surreal ou fantástica, suscitará no leitor o desejo de render-se completamente ao fluxo da obra, suspendendo sua descrença natural em relação a determinados elementos improváveis ou inexistentes no mundo “real”.
Em outras palavras, a boa escrita, não importa o quão surreal ou fantástica, suscitará no leitor o desejo de render-se completamente ao fluxo da obra.
A suspensão da descrença é a base de toda a literatura de ficção, de Moby Dick às Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas sua importância é especialmente evidente na chamada ficção especulativa – fantasia, sci-fi, horror –, que inclui grande número de elementos “irreais” (monstros, espécies alienígenas, dimensões paralelas, espadas mágicas etc.). É claro que todos sabemos que não existe uma escola mágica para bruxos no interior da Inglaterra, assim como qualquer indivíduo são reconhece que dragões, elfos, vampiros e lobisomens são criaturas absolutamente fictícias. Porém, quando nos deparamos com narrativas sólidas, embasadas em conflitos coerentes e resoluções coesas, somos capazes de aceitar tais premissas sem grandes esforços, suspendendo nossa descrença natural em relação a elas.
É nesse ponto que os fanboys de GoT têm razão: de fato, somos capazes de aceitar a presença de dragões e White Walkers na história – mas somente porque sua existência faz sentido dentro da lógica interna que o autor George R. R. Martin estabeleceu para o mundo que criou. Essas criaturas estão enraizadas na própria mitologia da série, e tem sua morfologia, comportamento e atributos particulares embasados nas leis naturais vigentes nesse universo fantástico.
Por outro lado, se Jon Snow se encontrasse subitamente face a face com extraterrestres reptilianos do planeta Nibiru (revelados como os verdadeiros vilões da trama), os leitores revirariam os olhos e demandariam a cabeça do autor – e com razão. Não há nada, nos cinco livros e sete temporadas da série, que indique a existência dessa raça de extraterrestres manipuladores no mundo de Westeros. Sua presença no enredo [highlight color=”yellow”]estilhaçaria a impressão de verossimilhança[/highlight] cuidadosamente construída pelo autor ao longo da saga ao introduzir um elemento que simplesmente desfaz toda a lógica ficcional estabelecida até ali.
A suspensão da descrença, portanto, tem limites: sua eficácia está relacionada à capacidade do autor de manter essa lógica interna coerente do início ao fim. Não é necessário um exemplo tão extremo como o citado acima para compreender esses limites. A suspensão da descrença é quebrada toda vez que resmungamos as palavras “Até parece!”: “Ah tá, até parece que o vilão ia revelar todo o plano dele para o herói ao invés de executá-lo!”, “Que ridículo! Até parece que alguém conseguiria escapar de uma explosão nuclear dentro de uma geladeira!” – e assim por diante.
Seja pelo uso de clichês, furos lógicos no enredo ou inconsistência no comportamento e na psicologia das personagens, o desmoronamento da suspensão da descrença arrisca [highlight color=”yellow”]arruinar toda a estrutura da obra de ficção[/highlight]. Sem a solidez dessa estrutura fundamental, o fictício – enquanto substância irreal extraída da própria realidade – torna-se insustentável, caricato ou mesmo ridículo.
E nenhuma obra, por mais popular que seja, está isenta disso.