Sexta-feira, 17 de janeiro de 2020. Depois da divulgação do vídeo em que copia uma citação do ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, o Secretário Especial da Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, foi demitido pelo presidente da república por conta daquilo que classificou, descaradamente, como uma mera “coincidência retórica”. No mesmo dia, do lado oposto da balança, na cidade de São Paulo, era aberto o festival Verão sem Censura, criado em defesa da liberdade de expressão e contra os retrocessos culturais impostos pelo atual governo. Ambos os episódios, cada qual em seu extremo oposto, ilustram perfeitamente o furacão no qual o Brasil mergulhou há tempos atrás.
Verão sem Censura
O festival é composto por obras e artistas que sofreram algum tipo de censura durante o governo de Jair Bolsonaro e acontece em diversos pontos da cidade de São Paulo até o próximo dia 1º de fevereiro. Promovido e organizado pela Prefeitura de São Paulo, o evento conta com shows, peças de teatro, exibições de filmes, exposições, debates, performances e carnaval, e tem como principal objetivo pensar e defender a liberdade nessa época em que a censura é compreendida enquanto método de governo e censores dão as caras à luz do dia, impunimente, defendidos por parte da população.
A programação do Verão sem Censura é extensa e conta com nomes como o fundador do Baile da Gaiola, Renan da Penha, preso de maneira arbritária por conta de uma suposta e nunca provada ligação com o tráfico, o poeta e músico Arnaldo Antunes, Teatro Oficina, Linn da Quebrada, DASPU e a banda punk feminista Pussy Riot, além de obras como Caranguejo Overdrive, Bruna Surfistinha, uma leitura de autoras latino-americanas censuradas e roda de conversa sobre Marighella e muito mais.
Durante quinze dias ininterruptos, artistas e obras que foram censurados, violentados, combatidos, expostos e proibidos terão a chance de defender suas criações e o direito de expressão que têm garantidos por lei, independente da anuência ou da permissão de quem quer que seja. Para além do óbvio, o Verão sem Censura também serve para reafirmar, mesmo que em segundo plano, o direito em outras esferas, como à ocupação da cidade e sua concepção enquanto palco e possibilidade de reinvenção da vida.
A cidade, barril de pólvora
“Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo” – Charles Baudelaire.
Para além do óbvio, o Verão sem Censura também serve para reafirmar, mesmo que em segundo plano, o direito em outras esferas, como à ocupação da cidade e sua concepção enquanto palco e possibilidade de reinvenção da vida.
A cidade, seu seio feito de concreto e aço, a dureza de suas ruas e a imensidão de sua paisagem já não encantam mais como antes. Se outrora flaneurs, como Baudelaire e Benjamin, dedicavam-se a desbravar o espaço urbano com os olhos enxarcados de poesia, hoje os grandes centros, entupidos de veículos e transeuntes, estão cada vez mais carentes desses olhares perdidos que buscam a beleza oculta misturada à fumaça e ao caos. Em São Paulo não é diferente. A cidade insône, máquina de moer sonhos, perde-se inteira no frenesi de sua própria urgência, no ir e vir míope de sua gente apressada, na cara fechada de seus motoristas aborrecidos, na incompetência de seus governantes.
Aliás, não podemos nos enganar pelo sorriso medido centímetro a centímetro, mesmo que esteja direcionado à gente. A mesma prefeitura que promove um festival em defesa da liberdade de expressão coibe e oprime seus habitantes diariamente de diferentes maneiras. Se por uma lado é preciso elogiar a iniciativa da prefeitura paulistana, por outro é preciso reinvindicar dos mesmos gestores a possibilidade de encontro com a cidade fora de suas festividades programadas e para além de seu centro/umbigo, inalcançável para boa parte dos moradores da capital.
Uma manifestação artística, independente de quem a organize, não é, como defendem alguns, um meio de favorecer senhores da cultura, políticos ou bem feitores e sim um meio que se vira contra eles em defesa da cultura. Aproveitar o festival Verão sem Censura e a potência de sua causa em tempos sombrios é, também, ampliar a discussão para além da liberdade de expressão; afinal, a liberdade dá-se como um todo, abrindo as asas sobre todos, e não em fragmentos e pequenos fronts onde ela é permitida, ou melhor: autorizada.
Censura nunca mais
Torcemos para que o festival Verão sem Censura sirva de exemplo a outras cidades e artistas Brasil afora. Em épocas em que a censura ameaça sair da sombra, é preciso que a arte e a cultura resistam aos ataques sofridos da melhor maneira possível, com aquilo que fazem de melhor: obras, festivais, encontros, rodas de conversa. E, pelo bem ou pelo mal, as guerras se travam, se vencem e se perdem nas ruas, inclusive quando o assunto e a causa de tudo é a arte e a liberdade de expressão.
Você pode conferir a programação completa do Verão sem Censura no site da Prefeitura de São Paulo clicando aqui.