Quando falamos de fotografia é preciso saber que tratamos de um assunto com o qual todos nós temos uma espécie de intimidade. No entanto, poucos dominam os seus mistérios e encantos.
Quando afirmo isso considero mais do que aspectos técnicos, afinal, a arte de fotografar guarda os segredos de um olhar que captura a vida e a transforma em obra. Creio que por conta dessa constatação, sempre tive a impressão de que uma foto é algo mais do que um mero registro. Uma fotografia guarda em si um misto de paixão e fúria. Um retrato eterniza sorrisos e lágrimas, guarda a beleza oculta que os olhos, viciados pela rotina, teimam em ignorar. Através delas contamos a história e documentamos sonhos, no intuito de recriarmos, pelas lentes do desejo, uma vida que carece mais de poesia do que de modelos.
No porta retratos, ou nas galerias, nada envelhece. A liberdade permanece de braços erguidos, mesmo que já os tenham mutilado através da força. A moça de laço de fita sorri discretamente, mesmo que tenha passado a vida aos prantos por um amor que se perdeu pelos cantos. A fotografia é uma das poucas formas que temos de ganhar do tempo que nos persegue a passos largos. Com o domínio de seus mais profundos segredos tapeamos a morte e acariciamos a face que já se apagou no horizonte de nossa lembrança. A mesma lente que perpetua heróis, denuncia e expõe bandidos. Uma foto é, portanto, um manifesto contra a nossa finitude.
Ao fotografar buscamos, mesmo que inconscientemente, o melhor conjunto possível para a obra. Da luz ao enquadramento, procuramos a beleza de um momento que julgamos digno da eternidade, por isso um click da máquina fotográfica representa mais do que um simples apertar do botão. Paisagens, pessoas, momentos. Fotografamos como uma forma de nos apegarmos àquilo que poderia durar pra sempre. Seja um pôr do sol na praia ou uma agressão covarde numa esquina qualquer durante a madrugada. Criamos mundos fantasiosos em estúdios com a mesma gana com a qual capturamos um beijo espontâneo na multidão.

Nada no palco é pra sempre e captar a essência de uma peça sempre me pareceu uma tarefa digna de crises absurdas de ansiedade.
Fotografar é a arte de exercitar o olhar diante do mundo e, como toda arte, ela dialoga com outras formas diversas de representação artística, dentre elas o teatro. A fotografia no teatro sempre foi algo me encantou e causou uma espécie de estranhamento. Não pela qualidade das fotos ou algo parecido, mas pelo fato de que o teatro é uma arte que segue seu rumo com o vento. Nada no palco é pra sempre e captar a essência de uma peça sempre me pareceu uma tarefa digna de crises absurdas de ansiedade. De que maneira eternizar aquilo que se dilui no ar por excelência? Como aprisionar em uma pose aquilo que é livre em gestos e versos?
Em minha curta caminhada pelos descaminhos do teatro, confesso que nunca encontrei ao certo a resposta para essas indagações. Convivi e ainda convivo com diversos fotógrafos, estejam eles ligados ou não ao teatro, e creio que aquilo que pude reconhecer em todos eles é justamente uma inquietude em relação à percepção. Não é que nada os escape aos olhos, pelo contrário, parece que seus olhos só captam aquilo que realmente importa, que pulsa, e que nós deixamos de perceber como se fosse uma névoa fina a flutuar sobre nossa íris domesticada.
Entre encontros e desencontros com essa arte, esbarrei essa semana no Sesc com o lindo, e imprescindível, livro Fotografia de Palco (Edições Sesc São Paulo), da fotógrafa Lenise Pinheiro. O trabalho de Lenise dispensa apresentações. A fotógrafa dedica a sua obra, e a sua vida, ao exercício fotográfico do teatro desde os anos 80, tendo trabalhado com os mais importantes diretores da cena nacional como José Celso Martinez Corrêa, Antunes Filho, Gerald Thomas e Ulysses Cruz.

Tive o primeiro contato com ela através de seu blog em parceria com o gigantesco Nelson de Sá, outro que dispensa apresentações, e já ali me encantei com o que, à época, apelidei carinhosamente de “a íris de exu”.
Exu, pelo que consta, é o único orixá que transita entre os mortais, no plano terrestre. Ora portando o caos, que exu não é de brincadeira, ora invocando a calma necessária aos trabalhos. Assim também reconheci Lenise: uma espécie de entidade que transita entre a cena e o público. Ora nos colocando diante do horror da realidade, ora nos brindado com a beleza que inunda a alma.
De sensibilidade apurada e de uma precisão cirúrgica, Lenise, mais do que simplesmente documentar, cria verdadeiras obras de arte através da obra que irradia no palco. Nada em sua arte é gratuito, tão pouco temos a impressão de estarmos diante de retratos de um espetáculo, basta folhear o livro para perceber que estamos diante de algo grandioso, sagrado, digno tanto da história do teatro quanto da fotografia.
De máquina em punhos, a mulher torna-se poeta e, como num passe de mágica, suas fotos ecoam feito versos que inflamam e fazem arder o nosso peito. Cada click é feito uma flecha que nos rasga por inteiro, dilacerando a realidade e trazendo à tona os delírios de Baco, numa imagem que parece abrasar nosso espírito e acalentar nossos demônios. O livro de Lenise é combustível para épocas em que a cretinice e a passividade parecem reinar em terras brasileiras.
Assim como um poema ou uma canção, uma fotografia também tem o poder de transformar a realidade em que vivemos. Lembro-me, por exemplo, das infinitas vezes em que olhei fixamente para àquela famosa foto da passeata dos cem mil e de como aquilo tocava a mim, um garoto que daquela época guardava apenas o calafrio do bafo gélido de um carrasco que nunca conheceu.
Através daquela foto conheci o significado de resistência. Ali tive a certeza de que resistir é acima de tudo manter os braços dados, mesmo diante do horror inevitável. Em épocas onde reinam as selfies, é preciso trazer de volta à fotografia uma de suas facetas mais apaixonantes: a coragem de vencer o tempo!
Por isso, diante de um obscuro tempo que se anuncia, eu fixo os olhos em uma tela em branco, imaginando que daqui a alguns anos a fotografia de meu tempo estampe mais do que velhas ratazanas salivando por sangue jovem.
Que os fotógrafos de nossa época, como Lenise, tenham a coragem de cavocar nosso cotidiano massacrado em busca de uma beleza que há de se manter viva, por mais que a realidade insista em lhe ocultar o brilho. Que as máquinas estejam em punho, e que o teatro pose de maneira heróica para o álbum da liberdade.