Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que o texto dessa semana é fruto de um descompasso tremendo, respaldado pela irresponsabilidade que nos invade em momentos de euforia. Explico-me: sentei diante do computador decidido, coisa rara ultimamente, a escrever uma análise a respeito de uma peça a qual assisti recentemente. Fiz, como é de praxe, anotações sobre iluminação, atuações e adaptação. Li com antecedência a obra que deu origem à montagem. Cheguei com dez minutos de antecedência ao local do espetáculo e, acreditem, sai de lá com o coração apertado direto pra casa, nada de bares ou naufrágios alcoólicos inesperados.
Diante da tela em branco, buscando, desesperadamente, as informações no caderno em decomposição, como se daquelas páginas amareladas fosse brotar a inspiração que havia evaporado de minha alma, me deparei com uma estranha obsessão: a imagem de um garoto. Uma criança comum, dessas que nada tem para nos chamar atenção além da infância que transborda de seus gestos, de seu sorriso inocente e esperançoso.
Aquela aparição infantil assombrou minhas intenções e, sem escolha, me deixei guiar pelo trem fantasma de suas traquinagens. Por conta dessa viagem é que me proponho hoje, pela primeira vez, a escrever sobre algo que praticamente desconheço. Algo sobre o qual não tenho anotações ou planos. Algo que além de explicitar uma falha em minha formação, denuncia uma tentativa desesperada de reencontro.
O teatro infantil, que por pura estupidez sempre considerei menor, é o combustível dessas despretensiosas, e duvidosas, linhas, dessa vez desordenadas e perdidas no acelerado fluxo do desconhecido.
Pequenas confissões e alguns questionamentos a respeito do teatro infantil
Confissão nº 1
A falta de conhecimento e estudo em relação ao teatro infantil me levam a trabalhar com a dúvida, por isso, é preciso, primeiramente, visitar as lembranças em busca dos espaços, das personagens e dos motivos que me levaram a um afastamento progressivo que acabou por desencadear uma birra, um tanto quanto juvenil, com esse tipo de espetáculo.
Questionamento nº 1
Falta inventividade e coragem a algumas companhias, e diretores, em relação ao teatro infantil, ou há uma carência de obras contemporâneas dessa espécie dedicadas à arte cênica? Até quando viveremos entre O Pequeno Príncipe e A Dona Baratinha?
Questionamento nº 2
Por que a insistência em atores adultos representando o papel de crianças? A representatividade não seria uma forma de incentivo ao gosto pelo teatro?
Confissão nº 2
Há possibilidade de equívoco no questionamento nº 1 por falta de conhecimento em relação à carência de obras. No entanto, basta uma simples busca no Google para verificar que muitas obras em cartaz são batidas e pouco têm a acrescentar às crianças atuais. Muitas delas parecem uma espécie de catequese para a formação da criança ideal, na visão dos adultos, é claro.
Questionamento nº 3
Há um excesso de temas adultos em obras dedicadas às crianças? A infância é guiada pela fantasia, o onírico pode significar mais aos olhos de uma criança do que a razão.
Por que a insistência em atores adultos representando o papel de crianças? A representatividade não seria uma forma de incentivo ao gosto pelo teatro?
Entre confissões e questionamentos sobra a certeza de que desconheço, e creio que existem muitos homens de teatro na mesma situação, o ambiente do teatro infantil. Na busca pela revolta, perdido entre aflições estéticas, esqueci a beleza fantástica da simplicidade que só os olhos infantis conseguem reconhecer.
Esse texto é um pedido de socorro. Clamo àqueles que se dedicam a esse tipo de espetáculo que se acheguem por aqui, dividam conosco suas experiências. Sem a pretensão de definir-se arte-educadores, é possível mergulhar na irresponsabilidade da que leva uma criança a se jogar no abismo do desconhecido.
Em tempo de massacres infantis, é preciso repensar o papel que nossa sociedade tem desenvolvido em relação às nossas crianças. Legaremos a eles o sonho ou a bala? O esquecimento ou o infinito? Entre o garoto indígena com a corda no pescoço e a criança baleada pela polícia homicida, fica a certeza de que é necessário dar voz a esses pequenos inventores do nada, já que o mundo forjado por nós, adultos, não passa de uma maneira, sem imaginação, de esperar a morte.
Que nesse vácuo entre o nascimento e sepultura desaprendamos todas as regras e nos dediquemos ao exercício do fazer de contas, quem sabe assim, um dia, possamos ao menos reencontrar a gargalhada daquele garoto que ainda atormenta meus tímpanos domesticados.