“Para onde você foi agora?” perguntam os atores para o público. Perguntam, de fato, de perto, querendo ouvir a sua resposta. São vários os lugares possíveis para se ir: ali são indicados alguns. Sugestões de possíveis trajetos sinestésicos, um cheiro doce no ar, uma história de criança, quase compartilhada, um olhar bem de frente para você. Um espaço sem distinção entre o que é artista e o que não é. Uma horizontalidade inerente. Um desejo de se esparramar nas almofadas do chão. A peça, dirigida por Talita Neves, assemelha-se a uma brincadeira porque cria um lugar no qual o presente é habitado, mas que é, ao mesmo tempo, um espaço que te direciona para outros rumos – um lugar paradoxalmente para se estar e para deixar-se ir.
O poeta Armando Freitas Filho publicou na “Ilustríssima” recentemente um texto em que pensa sobre o “Longínquo” a partir de trechos de poemas de autores tais como Alice Sant’Anna e Ferreira Gullar. Em determinado momento ele diz:
“Mas essa localidade [o longínquo] não tem pouso, nome, geografia. Ela é movediça, inventada quando em vigília, ou sonhada, quando não; naquele espaço curto, enfim, longo quando esses dois estados se entrelaçam e não se resolvem de pronto, e ficam inquietos, talvez por não ter nenhum fiel de balança à vista”.
E sobre o nosso desejo incessante de chegar até lá, onde fica o “Longe”, ele coloca:
“Não obstante, a vontade de entender a distância, o vivido entre os dois extremos, entre a viagem e a morada, insiste, mesmo frustrada; o familiar e transitório no itinerário, o déjà vu se reformulando com seu mecanismo fugaz, orgânico, e de estranhamento, parecido com o engenho do sonho, com sua linguagem e ordenação ‘godardiana’: um ir e vir indistintos”.
É “infância” a resposta que mais se ouve. “Sonho” vem depois. Dois lugares distantes para parte do público (outra parte parece não ter saído nem da infância e nem do sonho). Lugares sem geografias exatas, em que a memória se une a ficções, a verdades-inventadas. Há quem pense a obra de arte como a “abertura de um novo mundo”, em uma perspectiva heideggeriana. Na montagem em questão, mais do que a abertura, parece haver a contínua e colaborativa construção de um novo mundo. Um universo pensado em uma relação de troca. Um terreno em que é necessária a reciprocidade: não há chão se ele não for compartilhado – e isso, obviamente, não significa que as interpretações não sejam múltiplas, tão variadas quanto o número de pessoas presentes.
Na montagem em questão, mais do que a abertura, parece haver a contínua e colaborativa construção de um novo mundo.
Além de todos os recursos sensoriais, a origem do deslocamento, da transposição, está na palavra. Fazendo lembrar Herta Müller¹ ao dizer que, quando criança, tinha a impressão de que “as coisas se chamavam exatamente como eram, e elas eram exatamente como se chamavam” em um acordo “selado para sempre” – segundo a autora, a maior parte das pessoas não conseguia ver o vão existente entre objeto e palavra porque, ali no meio, é necessário “cravar os olhos no vazio” e “é isso o difícil”.
A poesia existente na produção da escritora romena, remete a poesia construída na peça estilhaços e […] algo assim em que as lógicas existentes entre a palavra e o objeto parecem se alterar para ver nascer daí uma possibilidade outra. Uma frase repetida diversas vezes com entonações, pontuações, indicações diferentes pode se transformar muito até adquirir significados vários ou, quando esgotada, significado algum. Palavras musicalizadas não são mais as palavras usadas corriqueiramente. Os atores Isadora Terra, Dirceli Lima e Iury Pietreski são os responsáveis por inverter as lógicas vigentes e cravar os olhos no infinito.
O universo lúdico (ainda que esteja desgastada a palavra, não me parece haver outra tão coerente) constitui-se com um ritmo próprio, em que o jogo surge com a naturalidade de uma brincadeira infantil – isso, em grande parte, porque a ambientação sonora, feita pelos músicos Dalila Lopes e Machison Assiz Abreu, acontece ao vivo e como parte fundante do espetáculo.
¹ MÜLLER, Herta. O rei se inclina e mata. São Paulo: Globo, 2013.