Escrever a respeito de Nelson Rodrigues, de sua vida e obra, é sempre uma aventura. Afinal, tratamos do mais adjetivado escritor brasileiro: gênio, louco, reacionário, esquisito, subversivo, tarado! São incontáveis as maneiras como o cabra é descrito, e a verdade é que nenhuma delas, e nem mesmo a junção de todas, dá conta do recado. São tantos Nelsons, e tantas são também as reviravoltas em sua vida, que é impossível, além de criminoso, tentar definir o que quer que seja em relação a ele. Nelson Rodrigues foi plural, como o são as paixões, combustível para sua escrita fulminante.
Nelson Rodrigues (1912-1980) nasceu no Recife, em 1912, e de certa maneira carregou sua cidade natal no peito até a sua morte. No entanto, foi no Rio de Janeiro, para onde se mudou com a família aos quatro anos de idade, que o escritor viveu e criou suas histórias, de modo que hoje em dia é quase impossível saber ao certo onde começa a cidade e onde Nelson termina. Se o Rio foi a maior expiração de Nelson Rodrigues, é impossível imaginar a cidade tal qual se apresenta hoje sem a influência das obras do escritor no inconsciente, e no dia-a-dia, de seus cidadãos.
A família Rodrigues não foi, e nem é, uma família qualquer. Numerosa, como qualquer família à época, a “trupe” comandada por Mário Rodrigues pode ser descrita como inacreditável: seja pelo talento natural para o exercício do jornalismo, seja pela sucessão de tragédias que caia feito garoa fina na caminhada dos Rodrigues pelo selvagem asfalto da vida. No meio dessa tormenta, Nelson cresceu entre exemplares de jornais, com o cheiro do papel e da tinta lhe fazendo companhia.
Desde menino, perambulava pelas redações, onde seu pai garantia com pulso firme o sustento da prole. Por conta disso, e dessa tal genética, não é de se estranhar que a sinfonia rítmica das máquinas de escrever fossem o som preferido do garoto, que mais tarde seria reconhecido, merecidamente, como um de nossos maiores escritores.
Se o Rio foi a maior expiração de Nelson Rodrigues, é impossível imaginar a cidade tal qual se apresenta hoje sem a influência das obras do escritor no inconsciente, e no dia-a-dia, de seus cidadãos.
Nelson nasceu fadado às redações, como muitos dos filhos de Dona Maria Esther, e assumiu sua pecha com absoluta firmeza. Poucos foram tão produtivos e inventivos em nossa imprensa. E poucos fizeram tanto: crônicas, folhetins, matérias policiais, traduções (mesmo sem uma segunda língua); a lista é imensa, assim como é imensa também a lista de grandes jornais pelos quais passou o escritor.
Nelson Rodrigues fez de tudo e é responsável por muita coisa do nosso jornalismo. Produzia em quantidade monstruosa, chegando a escrever diversos textos em um único dia e ainda se dedicar à dramaturgia durante a noite. De cigarro sempre aceso e de olhar cabisbaixo, o homem de suspensórios e ombros caídos transformava-se em um gigante diante de sua mais fiel companheira: a máquina de escrever.
Apesar da qualidade de seus escritos, e de sua produção contínua, Nelson sempre viveu com a corda no pescoço: ora por conta da tuberculose, talvez sua companheira mais fiel depois da Olivetti, ora por conta dos bolsos vazios, pavor de todo brasileiros desde o inicio dos tempos. Lá como cá, nesses dias cinzas, um jornalista precisava se desdobrar para juntar uns caraminguás e mesmo assim avistava o fim do mês com o fantasma da carteira vazia rondando os bolsos da calça. Com Nelson não era diferente.
O grande jornalista, reconhecido por todos, vivia no aperto e muitas vezes mal tinha algum pro café e pros cigarros, que fumava na mesma proporção em que produzia. Mas como de toda impossibilidade pode nascer uma oportunidade, Nelson vislumbrou uma saída para seus problemas financeiros: escrever para teatro.
Se hoje em dia parece loucura que o teatro, e principalmente a dramaturgia, possa dar guarita a alguém, na época a coisa parecia interessante. Haviam alguns dramaturgos enchendo casas de espetáculo na cidade, os teatros eram feitos para madames e senhores grã-finos, a society despencava pelas calçadas com suas melhores roupas em noites de estreia e Nelson era um baita escritor. O plano parecia perfeito, ao menos no papel, ou melhor: na cabeça de Nelson Rodrigues.
O que o aspirante a dramaturgo esquecerá, e que fez toda a diferença, é que escritores inquietos como ele não são meros comerciantes da palavra, pelo contrário, recusam-se a mudar uma vírgula de sua obra, seja por dinheiro ou imposição. Nelson não se lembrara de que seu maior ofício, depois das palavras, era a provocação, e de que o dedo na ferida era seu cartão de visitas. Aí o caldo desandou!
Sua primeira peça foi A mulher sem pecado, de 1941. A história de Lídia e Olegário gira em torno do ciúme absurdo que o marido tem da esposa. A obsessão do marido cresce a tal ponto que a esposa já não consegue mais ter paz, até que suas suspeitas acabam tornando-se realidade e, em um final absolutamente fantástico, o ser humano nos cospe à cara uma realidade que a tríade teatral da época, Procópio-Jaime-Dulcina, jamais havia escancarado ao espectador. A mulher sem pecado estreou pela Comédia Brasileira e não significou muita coisa ao público no pouco tempo que ficou em cartaz, mas rendeu a Nelson alguns bons elogios na imprensa, entre os maiores estavam o do poeta Manuel Bandeira.
Nelson Rodrigues: ‘Vestido de Noiva’
Apesar do pouco alarde causado por A mulher sem pecado, Nelson não desistiria do teatro. Mais do que a possibilidade de renda, o escritor havia se interessado pelas possibilidades cênicas, e a um homem acostumado às limitações do jornal era inegável que a possibilidade de soltar o dedo e escrever o quanto quisesse parecia sedutora demais para se deixar de lado. E foi agarrado a essa possibilidade que Nelson Rodrigues escreveu, em 1943, aquela que para muitos é considerada ainda nos dia atuais a sua obra-prima no plano da dramaturgia: Vestido de Noiva.
Alaíde é atropelada por um carro, a coisa é grave. Submetida a uma cirurgia, ela revive os conflitos com sua irmã Lucia, de quem roubara o amor de Pedro. Só isso já serviria como enredo. No entanto, Nelson ainda soma a tudo isso a estranha e encantadora figura de Madame Clessi: uma cafetina que foi assassinada.
A peça era um estrondo. Todos que a liam eram unânimes em dizer que se tratava de algo absolutamente genial. Contudo, poucos acreditavam na encenação daquela “loucura” rodrigueana. Achavam o troço difícil de entender, de encenar e até mesmo de explicar. Havia a realidade, a alucinação e o passado. A memória e o sonho, o carro estraçalhando tudo em nossa cara. Era demais para um espectador acostumado às peripécias de um teatro feito para divertir, e só para isso. As vozes eram unânimes a respeito disso, na verdade, quase unânimes.
Os comediantes aceitaram o desafio de encenar a peça, e tinham o nome certeiro para a direção, um polônes recém-chegado ao Brasil que conhecia tudo de teatro e, principalmente, era um profissional: Zbigniew Marian Ziembiński. O impronunciável europeu teria o teatro brasileiro a seus pés alguns anos depois e é ainda hoje considerado um gigante em terras tupiniquins.
Ziembiński era porreta e fez das tripas coração durante a montagem (assista abaixo uma entrevista com o diretor). Os atores, coordenados por ele, ensaiavam exaustivamente em busca da perfeição. Cenário e figurino deveriam passar, sempre, por sua aprovação. Bolou um mapa de luz inimaginável para a época, precisando inclusive alugar mais equipamentos e colocar no teatro para estreia. A montagem de Vestido de Noiva foi hercúlea, tanto que, no dia da estreia, a atriz principal entrou em colapso e quase se recusou a voltar para o teatro na hora do espetáculo. E foi assim, entre brigas e apreensões, que a peça estreiou no Municipal em 28 de Dezembro de 1943, mudando drasticamente os rumos do teatro brasileiro e dando a Nelson Rodrigues a glória que tanto buscou.
O autor de Vestido de Noiva tornou-se, do dia pra noite, o rei do teatro brasileiro. A peça marca o início da moderna dramaturgia brasileira. Décio de Almeida Prado descreve dessa maneira o impacto causado pela peça: “o que víamos no palco, pela primeira vez, em todo seu esplendor, era essa coisa misteriosa chamada mise en scène (só aos poucos a palavra foi sendo traduzida por encenação), de que tanto se falava na Europa. Aprendíamos, com Vestido de Noiva, que havia para atores outro modo de andar, de falar e gesticular além dos cotidianos, outros estilos além dos naturalistas. Incorporando-se ao real, através da representação, o imaginário e o alucinatório. O espetáculo, perdendo a sua antiga transparência, impunha-se como uma segunda criação, puramente cênica, quase tão original e poderosa quanto a instituída pelo texto”.
Nelson Rodrigues, debruçado em sua Olivetti, havia reinventado o teatro nacional. o sucesso de Vestido de Noiva perseguiu o autor, já que depois dele, ele nunca mais faria tanto sucesso. Nelson escreveria diversas peças durante a sua vida. Os personagens que inventou no teatro são parte significante do Brasil. Quem não se lembra de Boca de Ouro, Doroteia ou de Ismael, por exemplo. Os títulos de suas peças também não nos fogem à cabeça: Bonitinha mas ordinária, Toda Nudez Será Castigada, Senhora dos Afogados. Isso sem falar na quantidade incalculável de grupos, anônimos e notórios, que montaram Nelson Rodrigues pelo Brasil a fora.
Apesar da trajetória intimamente ligada ao jornalismo, é impossível falar de Nelson Rodrigues sem falar de teatro, assim como é impossível pensar a respeito do teatro brasileiro sem pensar na importância do dramaturgo. O teatro brasileiro moderno deve tudo ao anjo pornográfico, como se auto-intitulou o garoto que veio do Recife.
O teatro é uma arte em mudança contínua, parece que sempre que batemos o olho o desconhecemos. Tudo sempre está em movimento na arte do vento. Estéticas novas nascem e morrem com uma velocidade impressionante, destroem-se símbolos e fundam-se certezas aos montes. Nada nunca está no lugar quando falamos de teatro.
Nelson hoje, como sempre, provoca. Continua sendo um ponto de interrogação. Muitos tentam destrinchar seu pensamento, suas convicções, suas tragédias; mas a verdade é que Nelson Rodrigues, como o teatro, sempre se manteve em movimento. Nunca se deixou entregar às correntes, lutou, braçada por braçada, com a vida até que seus pulmões, cansados, eternizaram o mito. Nelson foi vários, e sendo vários foi nenhum. Talvez a única certeza que tenhamos a respeito dele é a de sua genialidade e originalidade, e a de que, sem ele, o teatro brasileiro não passaria de um intervalo entre o fim do expediente e o jantar.
Se há coragem em nosso teatro, e como há, muito dessa coragem vem daquele velho conhecido no fundo da sala, de cigarro em brasas no canto da boca e olhar plácido. Ele pigarreia, faz que vai iniciar uma frase, mas simplesmente baixa os olhos. Os dedos principiam a sinfonia de sua velha máquina, e então faz-se a luz… cênica!
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