O camarada, que andava meio pra baixo e sem vintém, resolveu submeter-se a um pequeno procedimento para renovar a crença em seu ofício e adicionar algumas linhas ao modesto currículo. Antônio, o Tonho, era ator. Ou ao menos acreditava que fosse. Havia praticado o teatro a vida toda em grupos escolares e religiosos, lecionou pequenos cursos livres dessa arte às crianças do Centro Comunitário e brilhou nos palcos mais importantes do condado: a Paróquia São José, o Auditório do Clube dos Comerciantes e o pequeno teatro de 50 lugares que a cidade guardava aos pés do “mini-redentor”: uma pequenina réplica do monumento carioca, quase imperceptível no alto da última montanha depois da ponte do riacho.
Durante muito tempo Antônio foi a grande estrela de sua gente. Era reconhecido nas mercearias, adorado nas biroscas e desejado no colégio. Como agradecimento, participava de tudo o quanto podia nas festanças da cidade. Em fevereiro, era o Pierrot do carnaval municipal. Em junho, vestia-se de noivo e entrava na igreja a contragosto com uma arma apontada em sua direção e uma noiva grávida em prantos ao seu lado. No mês de Setembro, distribuía doces à garotada e organizava brincadeiras durante toda a tarde do dia dos santos meninos. E no Natal, como era de se imaginar, fantasiava-se de bom velhinho e saía dando tchau a todos no topo de uma carroça adornada.
Todos adoravam Tonho, e Tonho adorava a todos. Mas como sempre acontece, a vida chega com suas urgência. Numa tarde qualquer, vestindo apenas seu único jeans surrado e uma camiseta branca, Antônio acenou em tom de adeus da janela do carro de seu pai. Não havia ninguém ali para se despedir dele, a não ser aquele velho cenário de sua infância que agora parecia pequeno demais para seus sonhos. Tonho rumou pra capital, foi estudar teatro e a cidade permaneceu ali: meio parada no tempo, órfã de sua única estrela.
Depois disso, a vida de Tonho foi como tantas outras: estudou muito, trabalhou mais ainda e, passados quatro anos de muita dedicação e pouquíssimas horas de sono, deixou a faculdade com um diploma nas mãos e um sonho no peito. O menino sempre soube das dificuldades que existiriam em seu caminho, mas nunca desistiu. Como era de se esperar, topou qualquer parada para sobreviver e aprender, por isso fez de tudo um pouco: propagandas, teatro infantil, promoção. A carreira de ator demorava a deslanchar, talvez até um pouco mais do que o esperado, mas Antônio manteve-se firme. Até mesmo nos últimos dias, depois de ficar quase um ano fora do palco e decidir se inscrever na tal “masterclass” que, diziam, o recolocaria de volta nos trilhos e no mercado.
O grande dia havia raiado e Tonho estava radiante. Já de dentro do ônibus, o garoto sentia que a mudança estava próxima. Quando desceu do carro, respirou fundo e sentiu que algo além de ar inundava o seu pulmão, era a esperança. Em frente ao auditório onde a coisa aconteceria, Tonho não se conteve: tragou novamente o ar, dessa vez mais fundo. Encheu seus pulmões de ar, esperança e felicidade e esculpiu naquela face que andava tão sombria um sorriso do tamanho de seu fascínio. Ao passar pela porta que dava acesso ao auditório lotado, ele podia jurar que sentia no ar o peso do notório saber.
Tensão. Música. Luzes. As cortinas se abriram. Um rapaz, um pouco mais velho do que Tonho, não muito, surgiu em meio à fumaça do palco e o barulho dos aplausos. Apresentou-se, sorriu, declamou seu currículo com doçura. A aula começara e o rapaz era incansável. Falou durante três horas. Mostrou exercícios, trechos de peças no telão, leu entrevistas de diversos artistas, inclusive algumas dele próprio. O “professor” passeou pela sua própria história. Recordou o início de sua carreira, falou sobre os seus conhecimento, que a Antônio pareciam infinitos, interpretou trechos de suas próprias peças e, ao final, encantou a todos com a técnica do “choro perfeito”. Era como se o seu sucesso fosse a solução para o fracasso de Tonho. Como se a sua fama fosse o remédio para o anonimato de Tonho. E o seu inegável talento fosse a prova de todo o desajeitamento de Tonho. E Antônio, de repente, ficou atônito.
Ao fim do troço, nos 10 minutos finais, o “mestre de cerimônia” pediu silencio a todos. As caixas de som do auditório começaram a tocar uma música instrumental, dessas que se usam para meditar ou relaxar. E rapaz emendou: “o principal, a grande questão no fim das contas é sempre a mesma: a resposta para as três perguntas principais. Sem elas, sem essas respostas, é impossível seguir em frente nessa profissão. Por isso, eu peço que nesses minutos finais fiquemos todos em silêncio e pensemos sobre esses três apontamentos: o que é teatro? Por que trabalhar com teatro? Onde o teatro pode me levar? Pensem, reflitam a respeito dessas perguntas e escrevam suas repostas.
A caneta na mão de Tonho investia contra o papel, mas nada escrevia. Antônio começou a ficar nervoso. E se por um acaso fosse o escolhido para ler as respostas diante de todos? Passaria uma vergonha danada, tinha certeza. O menino suava frio. Foram, ao menos até aquele dia, os dez minutos mais torturantes de sua vida, até que o rapaz tocou o sino e pediu para que todos parassem. Como o tempo era escasso, o “professor” resolveu que leria ele mesmo as suas respostas, do papel que carregava na carteira há mais de dez anos. E começou: “Teatro é uma arte cênico-dramática que tem como objetivo apresentar uma história fictícia, ou não, ao vivo. É representada por atores”. Tonho anotou a lição. O rapaz continuou: “trabalho com teatro porque acredito na fantasia. Contar uma história, vivê-la, é uma forma de transformar o mundo e a sociedade. E se isso for um espetáculo, melhor ainda”. E por fim, o rapaz decretou: “espero que o teatro me leve a todos os sonhos que carrego dentro de mim”. Pano. Fim de masterclass.
Trabalho com teatro porque acredito na fantasia. Contar uma história, vivê-la, é uma forma de transformar o mundo e a sociedade. E se isso for um espetáculo, melhor ainda.
Tonho, que entrou com o peito cheio de esperança, saiu completamento vazio daquele auditório lotado. Vasculhava dentro de si as tais respostas, sabia que as tinha guardadas em algum lugar, mas não conseguia encontrá-las. Caía uma chuva fina no fim daquela tarde, mesmo assim Tonho resolveu caminhar até em casa. Estava triste? Não, mas já estivera mais feliz. Enquanto sentia os cabelos grudar em seu rosto, pensava que talvez houvesse se precipitado. Que talvez fosse melhor desistir dessa coisa de ser ator e voltar à sua terra. Ali poderia aprender algum trabalho, quem sabe até voltaria à oficina do pai. Estava velho para casar-se com Mariana, a nova noiva da quermesse, mas ainda podia ser o Papai Noel no fim do ano e relembrar o antigo sonho.
A chuva continuava caindo, dessa vez mais forte, e Tonho continuava a vasculhar a si próprio, e nada de encontrar as tais respostas. Se não poderia responder a três simples perguntas, como poderia ser ator? O que pensariam dele os moradores de sua cidade, que o adoravam, se soubessem desse papelão? Imagine o comentário de Adriano no balcão do Miltons: “aquele ali nunca me enganou, ator é Francisco Cuoco, Fagundes. Aquele menino só fazia umas gracinhas por aqui e vocês achavam que seria alguma coisa. Francamente!”. A tristeza de Dona Sônia, sua grande fã, quando soubesse que havia fracassado. E foi então, de supetão, que Antônio descobriu que nem todas as respostas são iguais.
Descobriu que para ele a definição de teatro era mais simples. O que é teatro? Teatro é o que faz a Dona Sônia se travestir de Coronel, vestir calças e engrossar a voz para defender a honra da filha. Teatro é o cheiro de doce que toma conta da rua enquanto a meninada se esbalda de comer balas sem se preocupar com cáries ou levar broncas. Teatro é o acontecimento principal daquela gente que espera esses dias pra fingir que vive. E esse é justamente o motivo de sua crença. É por isso que ele quer trabalhar com teatro: pelo sorriso de Dona Sônia, pela aprovação de Adriano e pelo abraço caloroso das crianças na noite do Natal. Trabalhar com o teatro porque falta beleza na vida. E na terceira pergunta ele engasgou. Sabia a resposta, ela esteve o tempo todo ali. Pra onde o teatro vai me levar? Já o havia levado. O levou de encontro com ele mesmo, com sua história e com sua gente.
Antônio sabia que a simplicidade de suas repostas jamais agradariam aquele moço, e que talvez ele nunca compreendesse o que Tonho queria dizer com aquilo. Pouco importava. Tonho correu até sua mesa, pegou uma folha de caderno e anotou uma simples linha: É a própria vida. Porque é preciso. Até o fim.