Pense na sua memória mais antiga sobre a televisão, aquela que desperta algum tipo de sentimento afetuoso em relação ao passado. Pode ser, por exemplo, as noites de sábado passadas ao lado de Gugu Liberato no Viva a Noite, a descida da nave no Xou da Xuxa, ou alguma abertura do Fantástico com modelos futuristas emergindo da água.
Se você já teve essa saudade aplacada ao procurar essa imagem no YouTube, é bastante provável que esse registro tenha chegado até você por conta do garimpo realizado por pessoas que se tornaram verdadeiras arqueólogas informais da história da televisão. São indivíduos que, por anos, guardaram esses materiais em fitas VHS e, com o surgimento da plataforma, colocaram esta memória na internet.
Nesta reportagem da Escotilha, conversamos com esses guardiões da memória que fazem um trabalho voluntário na coleta e armazenamento destes materiais que não foram protegidos pelas próprias emissoras – e que muitas vezes são vistos como “piratas”. As entrevistas feitas com Fábio Marckezini (do Arquivo Marckezini) e Danilo Rodrigues (do canal Pedro Janov) revelam a história de dois apaixonados por televisão que reservam uma boa parte do seu tempo para catalogar a sua história.
Como tudo começou
As vidas do jornalista Fábio Marckezini e o fonoaudiólogo Danilo Rodrigues são representativas de muitos brasileiros crescidos nos anos 1980 e 1990, quando a televisão tinha maior centralidade na vida cultural do país. Ambos começaram a sentir essa proximidade com o veículo por influência dos próprios pais.
Marckezini conta que, embora os pais não trabalhassem na área da comunicação, eles gostavam de TV e começaram a explorar as possibilidades de um aparelho hoje arcaico: o videocassete. “Meu pai comprou um usado da minha tia e me mostrou que eu poderia gravar a televisão. Fiquei fascinado com aquela tecnologia. Para falar a verdade, eu não podia mexer muito, mas a primeira coisa que lembro que gravei foi a cobertura da morte do Senna. Eu tinha nove anos de idade e era fanático pelo Senna. E o meu pai, por mais que fosse bancário, sempre foi uma pessoa muito televisiva”, conta.
Fábio conta que intuiu que aquele era um momento importante, e foi estimulado pelo pai. “Ele falou: ‘a gente tem que gravar isso porque é um momento muito histórico, triste e histórico’. Aquilo ficou gravado na minha cabeça, a ideia de ser um momento histórico que tem que ser registrado. Eu entendi ali o poder da fotografia, do livro, da revista, do jornal, e de uma fita VHS em que você podia gravar registrar e guardar”, lembra.
A influência familiar também é presente na vida de Danilo Rodrigues. “Meu pai foi uma criança dos anos 60. Ele gostava muito das séries da infância dele, como Perdidos no Espaço, Além da Imaginação, Agente 86, Daniel Boone. No final da década de 80, com o advento do videocassete, meu pai começou a gravar essas séries quando elas eram reprisadas. Desde quando eu comecei a me entender por gente, já tinha videocassete em casa, e gravações de TV. Tudo que ele gostava, ele gravava, e criou um acervo de fitas”, recorda.
“Eu sempre gostei de ver televisão – não era a criança que gostava de bicicleta, que jogava bola, não era muito de brincar na rua. Então eu via jornal, novela, via Aqui Agora com minha avó”
Danilo Rodrigues
Ele conta que, quando tinha 5 anos, os pais trocaram o videocassete da casa e ele pode ficar com o aparelho velho. “Comecei a gravar o que eu via quando era criança, como Rá Tim Bum, Mundo de Beakman. Eu sempre gostei de ver televisão – não era a criança que gostava de bicicleta, que jogava bola, não era muito de brincar na rua. Então eu via jornal, novela, via Aqui Agora com minha avó”, afirma Rodrigues.
Além disso, Danilo tem na família um avô que atuou nos primórdios da televisão. Ele é neto de Elísio de Albuquerque, ator de novelas da TV Tupi, que, entre outros papéis, foi o Dom Rafael na novela O Direito de Nascer. Ela conta que sua avó, que também foi atriz, preservou muitos arquivos dessa época. “Ela guardava os scripts de novela e jornais durante 30 anos, tudo escondido – nós só descobrimos isso depois que ela morreu. Meu pai coleciona quadrinhos, tem mais de 40 mil gibis em casa, e minha mãe coleciona brinquedos antigos e pinguins de geladeira. Então a minha coleção é só mais uma”, brinca.
O pulo para a internet
Fábio Marckezini e Danilo Rodrigues começaram seus canais em tempos diferentes, mas antes do boom atual promovido pelas redes sociais. Danilo recorda de ter feito uma página quando tinha cerca de 11 anos, na página Home Page Grátis. Foi na mesma época que começou a ingressar em fóruns de discussão de TV. Ele recorda: “eu não gostava mais tanto de programas infantis, mas gostava da história da TV, como saber sobre por que a TV Manchete faliu. Lembro que havia uns sites rudimentares, como um chamado Telemania, o TV Crítica, um sobre a história da TV Manchete, outro só sobre as novelas do Gilberto Braga”.
Em seguida, ainda na adolescência, ele começou a enviar verbetes de novelas para o site de Nilson Xavier (do site Teledramaturgia). Logo surgiu a troca com pessoas que também gostavam de televisão e colecionavam arquivos. “Sempre fui meio ‘rato’. Aí eu criei um site chamado Troca Tapes, e as pessoas começaram a entrar em contato para trocar VHS com arquivos de TV. Eu lembro que tinha gravado A Próxima Vítima, quando reprisou no Vale a Pena Ver de Novo, e tinha uma pessoa que queria. Ela tinha vários capítulos de novelas antigas e fomos trocando”, conta.
Em 2005, Rodrigues resolveu então fundar seu canal no YouTube. A ideia apareceu enquanto ele digitalizava suas fitas VHS para o DVD. “Comecei postando coisas curtas porque era o que a plataforma permitia: intervalos, Globo saindo do ar dando a programação do dia seguinte, trechos de jornais”, recorda.
Nascia aí o canal Pedro Janov – nome que ele inventou com um amigo por conta de uma piada. “No meu primeiro canal, de 2005 a 2021, eu usava meu nome real. Pedro Janov surgiu do e-mail que eu usei para criar o segundo canal. Era um nome falso que um colega usou para comentar no site de um vereador pra quem trabalhamos na eleição de 2012, fazendo número nos posts… Era em uma matéria sobre um centro de imigrantes do leste europeu, daí saiu esse Janov”, lembra. Danilo acha que o uso do pseudônimo ajuda a separar os “personagens”, do fonoaudiólogo e do colecionador de televisão.
Já Fábio Marckezini conta que acompanhava o trabalho de Danilo e de José Marques Neto (da Mofo TV) quando decidiu criar o próprio canal. A princípio, ele achava que disponibilizar seu acervo seria perda de tempo. Mas, em 2016, enquanto enfrentava um momento profissional ruim, acabou mudando de ideia. “Comecei a me distrair vendo alguns vídeos de canais como o Arca da Fuzarca, que eu acho uma maravilha. E aí comecei a entender que o importante é compartilhar”, afirma.
Um dia, ele encontrou em uma fita VHS que havia gravado um comercial com o jingle da Coca-Cola Light de 1998 – e notou que Ingrid, sua esposa, ficou muito empolgada ao lembrar daquilo. “E aí eu entendi que o poder de compartilhar as coisas é o poder de você levar uma alegria, levar um conhecimento, levar o acalento”.
O precursor
Tanto Fábio quanto Danilo tiveram inspiração em José Marques Neto, conhecido como Neto, fundador do canal Mofo TV, que faleceu em 2023. Eles prestam reverência ao trabalho pioneiro que foi feito por Neto, que virou amigo pessoal dos dois.
“O Neto é minha maior inspiração, não só minha, mas de todos que fazem esse trabalho de arquivo. Ele foi o desbravador, começou lá por 2005, 2006. Foi ele que começou a colocar no YouTube coisas que as pessoas não lembravam ou não sabiam. Hoje nós temos um conhecimento muito mais completo, inclusive no meio acadêmico, por tudo que está disponibilizado aí, nas revistas, nos acervos de jornais, por causa disso”, afirma Fábio Marckezini.
Quando Neto – que era dentista por formação – faleceu, os canais de arquivos se uniram para prestar uma homenagem ao seu trabalho (disponível acima). Marckezini destaca que, além de um preservador do arquivo de TV, Neto era uma pessoa generosa e acolhedora com os colegas com o mesmo hobby. “Eu acho que ele nem sabia da importância que ele tinha. E muita gente só notou isso quando ele morreu. Ele dizia assim pra mim: “Fabinho, você tem que entender que a gente é os ‘anônimos famosos’”, conta.
Os strikes aos canais
Uma das principais questões relativas aos canais que preservam arquivos de TV é que eles acabam ficando em uma espécie de limbo. Para os fãs do meio de comunicação, eles prestam um serviço de memória importante, guardando registros que não ficam disponíveis em outros lugares. Mas seguidamente são encarados pelas emissoras de televisão como piratas que estão tomando posse de seus materiais. A consequência disso é que os canais que mantêm estão em constante risco de serem derrubados do YouTube.
“Somos vistos como excêntricos – inclusive por jornalistas e pessoas dentro das emissoras”
Fábio Marckezini
Danilo Rodrigues criou seu primeiro canal em 2005, na mesma época em que José Marques Neto abriu o Mofo TV. “A primeira derrubada de canal foi em 2012, que atribuo a alguém se passando pela Globo (o controle não era tão rígido). A segunda derrubada foi em 2020, dessa vez legitimamente pela Globo. O estopim foi a viralização de uma matéria do César Tralli sobre uma agência de pessoas feias”, conta.
Até então, seus vídeos eram postados sempre com uma marca d’água que dizia “Você viu primeiro com Pedro Janov, não copie no seu canal”, o que tornava fácil identificar a origem. A partir de então, ele parou de usar esse recurso.
Ele pensa que esta perseguição ao seu trabalho tem a ver com o interesse das emissoras de que certos materiais não sejam “ressuscitados”, já que nem ele nem Fábio Marckezini monetizam seus canais.
Já Fábio conta que seu canal nunca foi derrubado, mas que seu canal já recebeu strikes (quando um vídeo ou um canal recebe advertências do YouTube por estar ferindo regras da plataforma). “Já tomei strike da Globo, da Igreja Universal, da Philip Morris, da Video Filmes, mas nunca deletaram meu canal. Então acho que tive sorte”, afirma.
A política da derrubada dos vídeos é algo que tem mudado com o tempo, à medida em que as emissoras se dão conta que há vantagens para elas naquilo que fazem. Marckezini explica: “o que vejo, no caso das emissoras, é que elas estão tranquilas atualmente quanto aos conteúdos. Quem pesa mesmo é a Globo, mas pontualmente. Se você postar algo antigo, mas que está no ar no Globoplay antigo, eles vão bloquear o vídeo. Por exemplo, se eu postar algo do Mulheres Apaixonadas, que está no ar, com certeza a Globo vai derrubar”.
Os impactos do trabalho
O resgate e o registro da memória dos canais de televisão têm servido para muitas coisas – e não apenas para reacender memórias afetivas dos espectadores. Os jornalistas e pesquisadores de TV também tiram proveito do trabalho feito por gente como Fábio Marckezini e Danilo Rodrigues.
É o caso, por exemplo, do jornalista Maurício Stycer, que lançou recentemente o livro O Homem do Sapato Branco, sobre a história do apresentador Jacinto Figueira Júnior, e muito do que pode encontrar sobre a trajetória do apresentador vinha desses arquivos.
Stycer destaca a importância deste tipo de trabalho, que é voluntário. “A ausência de acervos oficiais abertos para consulta, as coleções de alguns pesquisadores abnegados, muitos dos quais não ganham nada pelo trabalho, ajudam a documentar aspectos da história da TV aberta no Brasil. Na minha pesquisa sobre o Homem do Sapato Branco, vários destes vídeos antigos, salvos em canais no YouTube, foram fundamentais para preencher alguns vazios. Contei com a ajuda dos canais do Bocão (Javier Malavasi), do Arquivo Marckezini (Fábio Marckezini), entre outros citados nas fontes e referências do livro”, comenta.
Parte da motivação para continuarem fazendo o que fazem vem justamente deste tipo de retorno. Mas Fábio Marckezini afirma que é preciso ter responsabilidade, e há arquivos que ele decide não postar – como cenas de violência e reportagens que se tornaram inadequadas com o passar do tempo.
Ele conta um exemplo: “estava mexendo nas minhas fitas de 2002 e achei uma matéria do Vídeo Show, com a Ana Furtado. Eles pegaram duas atrizes que deviam ter uns 13, 14 anos, e elas experimentam sutiãs pela primeira vez. Elas saíam do provador com a blusa, mas a câmera focava para mostrar os seios delas. Isso não coloco no ar, no meu canal não vai”, conta.
E mesmo passados tantos anos alimentando seus arquivos digitais, Marckezini e Rodrigues acreditam que seu trabalho ainda não é bem visto. “Eu acho que as emissoras não ligam hoje para a gente. Somos vistos como mais um, como excêntricos – inclusive por jornalistas e pessoas dentro das emissoras. Infelizmente, é assim que somos vistos”, afirma Marckezini.
Rodrigues acredita que continuam sendo vistos como piratas pelas emissoras, até que precisam de algo que eles guardaram. “Quando vão fazer séries, como aquela sobre o caso da Daniela Perez, e elas não têm mais os telejornais da época arquivados, quando morre alguém de repente e puxam registros do YouTube pra ilustrar matérias, aí nós servimos”, diz.
Ainda assim, gente como Fábio Marckezini e Danilo Rodrigues seguem firmes dedicando parte do seu tempo para criar acervos que contemplam as memórias de tantas e tantos brasileiros que tiveram suas histórias e memórias marcadas por aquilo que viram na tela. Os fãs da televisão agradecem.
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