Multifacetado, Jô Soares foi um intelectual da TV. Por mais paradoxal que pareça essa ideia, a verdade é que Jô conseguiu uma façanha única: a de levar sua erudição para um meio de comunicação de massa, na mesma medida que proporcionava o melhor do humor de sua época. Jô foi muitos e espalhou suas marcas para além da TV, mas foi nela que ele atingiu o grande público que só esse meio consegue abraçar.
A série documental Um Beijo do Gordo, dirigida por Renato Terra na Globoplay, nasce com esse imenso desafio: o de tratar de um ser humano grandioso em apenas quatro episódios, tendo que escolher recortes dentro de uma carreira infindável. Diretor e equipe então optaram por um caminho mais ou menos cronológico, que retrata o começo de sua carreira na comédia, os programas humorísticos na Record e na Globo, até a coragem para lutar por um sonho: o de apresentar um talk show.
Para isso, Jô Soares abriu mão do poderio da emissora em que estava e foi para uma menor, o SBT, enfrentando a sanha vingativa da Globo. Mas a aposta valeu a pena. Exibido entre 1988 e 1999, Jô Soares Onze e Meia praticamente fundou o formato no Brasil e se tornou referência para todo programa de entrevista que viria depois dele.
Em 2000, Jô voltaria à Globo em grande estilo, capitaneando o Programa do Jô, no qual ficaria até 2016. Desde sua saída, ficou fora da TV, e por fim faleceu de insuficiência renal em 2022, aos 84 anos. Mas esse breve resumo não faz jus àquilo que ele foi, muito além do que foi conhecido pelas pessoas. E é isso que Um Beijo do Gordo tenta apresentar ao seu público.
Recortes de uma vida grandiosa
Um Beijo do Gordo comove ao contar a história de um personagem absolutamente único e erudito dentro de um veículo que, na maior parte das vezes, fica limitado à superfície dos temas.
Conforme já dito, Renato Terra tinha em Um Beijo do Gordo a tarefa, ao lado da roteirista Jordana Berg, de optar por poucos momentos dentro de uma carreira absolutamente profícua. Nos quatro episódios, chama a atenção que suas escolhas sejam por momentos não tão conhecidos assim, os quais desenvolve com fluidez e calma – o movimento contrário seria tentar colocar o máximo de situações possíveis, sem desenvolvê-las.
Um acerto é focar em aspectos do processo de criação de Jô Soares, o que deve ajudar a apresentá-lo e a explicar às novas gerações porque ele é considerado genial. Uma entrevista muito interessante nesse sentido é a de Bruno Mazzeo, que fala da amizade de Jô com seu pai, Chico Anysio, o outro rei da comédia da Globo. Bruno explica, na sua visão, a diferença entre os dois: Jô fazia um humor político e Chico, um humor mais social.
Também é um grande ganho as entrevistas com os músicos que compartilhavam o programa com o apresentador, formando o Quinteto do Jô, que em certo momento virou Sexteto. Ali há pequenas pistas deliciosas que esclarecem como Jô tinha a perfeita noção de como controlar tudo para fazer as interações do seu programa parecerem espontâneas e, por isso, sempre engraçadas.
Conversando com muitas pessoas que passaram pela vida do Jô, seja na frente ou atrás das câmeras, Um Beijo do Gordo tem como riqueza esse relance à faceta dos bastidores. Embora todos os entrevistados teçam grandes elogios ao apresentador e humorista, que é definido como uma pessoa extraordinária, é interessante que a narrativa opte por não fechar os olhos para possíveis “calos” na imagem generosa de Jô.
Cito dois momentos mais complexos: em um suposto entrevero que ele teria tido com Fábio Porchat, sugerindo que houve um certo boicote ao novo comediante (as razões não são bem explicadas, e Porchat conta que, em certo momento, Jô ligou para ele e pediu desculpas) e no depoimento de Claudia Raia sobre o relacionamento dos dois. Logo após a atriz falar que todos se impressionavam que a mulher mais gostosa da Globo fosse apaixonada por um homem gordo, é veiculada uma entrevista com Flavinha, esposa de Jô por onze anos, contando que o apresentador disse a ela que namorou Claudia só porque ela não lhe deu bola.
Essas nuances são importantes para que se tire um pouco a visão de um homem sem defeitos. Mas é impossível não se emocionar com as falas do último episódio, que foca apenas na vida íntima e nos últimos momentos da vida de Jô Soares. São relatos intimistas e até banais, como os narrados por Adriane Galisteu, que era sua vizinha de prédio e que compartilhava com ele o hábito de comer guloseimas pouco saudáveis na madrugada.
Embora alguns aspectos da série documental possam ser considerados over (coloco aqui a reconstituição do cenário do Programa do Jô para tentar emocionar os entrevistados que dessem entrevista nele, o que traz um certo efeito de quadro do Luciano Huck), o fato é que Um Beijo do Gordo comove ao contar a história de um personagem absolutamente único e erudito dentro de um veículo que, na maior parte das vezes, fica limitado à superfície dos temas. E deixa claro: nunca mais haverá alguém como Jô.
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