Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de ter descoberto antes quem era Álvaro Lapa – artista e escritor autodidata, foi e ainda é uma das figuras mais enigmáticas da arte portuguesa contemporânea – e certamente teria me comovido desde sempre. Em sua maior retrospectiva já realizada, a Fundação de Serralves, na cidade do Porto, me proporcionou um mergulho intenso nas obras do artista, que permeiam a vida, a filosofia e a imensurável força do tempo.
A mostra No tempo todo denuncia ao público a extrema sensibilidade poética de Lapa através da união entre literatura, filosofia e arte. Caminhando por dentre mais de 300 obras, entre pinturas, desenhos e objetos, o fascínio pela maneira em que o artista trata de questões existenciais me arrebatou. De certa forma surrealista, mas sem assinar embaixo seu nome no movimento, Álvaro criou com seu conjunto da obra um complexo e enigmático universo, onde por vezes se repetem símbolos, palavras e histórias, gerando intertextualidade entre suas próprias pinturas e desenhos.
É, também, um artista que prezava mais pelas mensagens e parábolas contidas em suas obras do que por essencialmente uma técnica rebuscada de pintura – mas o fazia não por falta de habilidade, mas sim pela expressão abstrata e contemporânea do sentimento que tinha intenção de passar. Os materiais utilizados em suas pinturas eram, também, o que podemos considerar “materiais pobres”, como tintas acrílicas e platéx.
![Fragmento de “Em que pensas? No tempo todo”](https://escotilha.com.br/wp-content/uploads/2018/03/artes-visuais-Alvaro-Lapa-Em-que-pensas.jpeg)
Não posso deixar de concordar com Ana Pinho, presidente do Conselho de Administração da Fundação de Serralves, que declarou que caso Álvaro Lapa tivesse outra nacionalidade, como por exemplo norte-americana, hoje teria uma projeção ao nível dos maiores nomes da arte contemporânea. De fato, o quebra-cabeças proporcionado por Lapa é apaixonante e complexo, e nos permite ingresso à mente do artista e um pouquinho do que também já está em nós mesmos.
![Parte de “As Profecias de Abdul Varetti, Escritor Falhado”, 1972](https://escotilha.com.br/wp-content/uploads/2018/03/artes-visuais-alvaro-Lapa-Profecias-de-Abdul-Varetti.jpeg)
Álvaro criou com seu conjunto da obra um complexo e enigmático universo, onde por vezes se repetem símbolos, palavras e histórias, gerando intertextualidade entre suas próprias pinturas e desenhos.
A sua relação com a literatura se expressou de diversas maneiras; seja através dos próprios títulos adicionando contexto e conteúdo às obras ou através de referências diretas a nomes de sua biblioteca pessoal subversiva – na sua série “Cadernos”, por exemplo, se propõe a imaginar como seriam os simples cadernos de grandes autores, de Freud e Kafka a Homero.
Mas é no campo essencialmente autoral, como “n’As Profecias de Abdul Varetti” (1972) e em obras como “Instrução Pessoal” (1969) que Álvaro mostra toda sua potência como escritor.
É aqui que deixa claro suas aflições em relação ao tempo que insiste em passar e em como lidar com a essência de ser humano sem jamais termos a certeza do quê deu origem a tudo.
Como ode ao exímio artista, autor e filósofo que foi (Évora, 31 de julho de 1939 – Porto, 11 de fevereiro de 2006), termino este texto transcrevendo o cerne de Instrução Pessoal, acompanhado da obra original.
“Ao contemplar o Amor e a Compaixão, eu esqueci toda a diferença entre mim e os outros. Habituado muito tempo há meditar sobre o meu Guru, desdobrando-se em aura sobre a minha cabeça; eu esqueci todos os que reinam pela força e o prestígio. […] esqueci a angústia do nascimento e da morte. Habituado por muito tempo a aplicar toda a nova experiência ao meu próprio desenvolvimento espiritual, eu esqueci todas as crenças e todos os dogmas.”
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