Há uma linha delicada entre a genialidade e a loucura, e outra ainda mais sutil, quase invisível, que separa o brilhantismo de ser considerado “difícil”. Faye Dunaway foi rotulada como genial, brilhante e louca. Difícil de lidar.
A maioria dos documentários sobre personalidades lendárias suaviza as arestas de seu protagonista e tenta apresentá-lo de forma mais “humanizada”, seja lá o que isso queira dizer. Faye, em cartaz na plataforma de streaming Max, muito parecido com a força da natureza no centro de sua narrativa, segue um caminho mais acidentado e menos percorrido. O filme se inclina para a tendência ao perfeccionismo meticuloso de sua estrela, e ocasionalmente se torna furioso, tanto que você se pergunta se o objetivo final do filme não é contrariar a reputação de Faye, mas reforçá-la ainda mais.
Ouve-se Dunaway antes de vê-la, reclamando na trilha sonora que ela está pronta para filmar: “Por que ainda não começaram a filmar? Vamos lá!”. Mais tarde, o diretor Laurent Bouzereau – um veterano na documentação de lendas de Hollywood Antiga e Nova, tendo feito Natalie Wood: What Remains Behind (2020) e Five Came Back (2017) – apresenta uma montagem da estrela sentada em seu sofá, resmungando sobre tudo, desde o ângulo em que está sendo filmada até a água que está bebendo.
Manchetes que destacam seus acessos de raiva e ausências repentinas de produções, todas cheias de trocadilhos (“Dun-Away With!”), passam rapidamente pela tela. Um clipe vintage do Tonight Show da era Johnny Carson mostra a estrela Bette Davis chamando Dunaway de a pior pessoa no showbiz.
Faye não justifica nem condena as críticas que Dunaway recebeu ao longo das décadas. O documentário simplesmente integra o ruim e o feio com o bom, às vezes de maneiras que favorecem um elemento sobre os outros dois. Ela admite que “Faye” é realmente uma construção, sua persona de Hollywood, mas não seu melhor eu. Esse seria Dorothy Faye Dunaway, a gentil garota sulista que lidou com um pai alcoólatra e viu em sua mãe forte e destemida um modelo.
Atraída pela ideia de se tornar atriz, ela acaba na cidade de Nova York e trabalha com o grande diretor teatral e cineasta Elia Kazan na Lincoln Center Repertory Company nos anos 1960. Muito trabalho no palco aprimora suas habilidades, e algumas aparições no cinema chamam atenção. Então vem Bonnie & Clyde: Uma Rajada de Balas. Nasce uma estrela.
Ninguém achava que Faye deveria assumir a executiva de TV durona que estava marcada como a vilã em Rede de Intrigas, de Sidney Lumet. Ela insistiu e acabou ganhando o Oscar de melhor atriz em 1977.
O filme de Arthur Penn, lançado em 1967, é abençoado com duas performances memoráveis, de Faye e de Warren Beatty, nos papéis principais, e um dos maiores slogans de todos os tempos (“Eles são jovens. Estão apaixonados. E matam pessoas”). A produção transforma Dunaway em ícone fashion instantâneo do cinema. Seguem-se alguns papéis antológicos, seguidos por histórias lendárias sobre esses trabalhos. ou melhor, sobre Faye durante as filmagens.
Crown, o Magnífico a coloca ao lado do astro Steve McQueen, que a provocava por ser tão magra — seu apelido para ela era Done Fadeaway (algo como Feita Evanescente) — e deu a ela a chance de ser a investigadora de seguros mais chique do mundo. Chinatown a emparelha com Jack Nicholson, que a chamava de Dread (“Terror”), e a viu travar batalhas com o igualmente intempestivo diretor do filme, o franco-polonês Roman Polanski. Insatisfeita com os tapas de tela que Nicholson estava dando durante a infame sequência “Minha irmã, minha filha!” (sua personagem é estuprada e engravidada pelo próprio pai, vivido por John Huston), Dunaway insistiu que ele batesse nela de verdade.
Ninguém achava que Faye deveria assumir a executiva de TV durona que estava marcada como a vilã em Rede de Intrigas, de Sidney Lumet. Ela insistiu e acabou ganhando o Oscar de melhor atriz em 1977.
Essa mesma estatueta pode ser vista na que talvez seja a foto mais famosa de Dunaway, sentada à beira da piscina de um hotel em Los Angeles e parecendo a mulher mais glamourosa e cansada do mundo. A foto foi tirada por seu segundo marido, o fotógrafo britânico Terry O’Neill; os dois mais tarde adotariam um filho, Liam O’Neill. E é através desse forte vínculo mãe-filho que vemos outra Faye. Ambos falam abertamente sobre como o transtorno bipolar não diagnosticado da atriz ocasionalmente causava estragos na dinâmica familiar e explica parte do comportamento errático que rendeu a ela a mencionada reputação de “difícil” e “meio doida”.
O legado do alcoolismo abalaria ligeiramente sua carreira no início dos anos 1980, embora, segundo a própria Faye, a bebida a ajudasse em seus desempenhos. A recepção inicial a Mamãezinha Querida (1981), no entanto – ainda muitos anos antes de o filme sobre a atriz Joan Crawford ser considerado um clássico camp e um marco da cultura drag — quase levou Hollywood a descartar Faye para sempre.

Bouzereau consegue manter a complexidade na maior parte do documentário, equilibrando interlúdios mais leves (como o caso de amor de Dunaway com Marcello Mastroianni), comentários perspicazes sobre mulheres pagando o preço por exercerem poder no show business, depoimentos de críticos e celebridades e toneladas de clipes.
Quando chega ao último terço, no entanto, você tem a distinta sensação de que Faye de alguma forma ficou sem coisas para dizer, e o filme preenche o tempo restante com tributos ao Festival de Cannes (Faye adorava ver filmes lá!), algumas menções à sua turnê no palco como Maria Callas em Master Class e uma peça abortada sobre Katharine Hepburn (ela é da Nova Inglaterra e Faye é do Sul — simplesmente não funcionará!), e ainda pisa em terreno anteriormente coberto sobre seu amor pela família.
Faye é, ainda assim, um envolvente retrato de uma artista, ao mesmo tempo uma prima donna, uma pioneira e, sim, dona de uma genuína genialidade.
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