Em Criogenia de D., a narradora/narrador declara: “minto tanto que às vezes não sei diferenciar a realidade do que inventei”. Ao postular-se como mentirosa/o, D. esclarece, logo no início da obra, que este é um livro cuja narrativa ocorrerá sob a perspectiva intimista de quem observa, com lentes bastante particulares, a própria vida. O que sabemos sobre nós e sobre a nossa história, de certa forma, é pura invenção.
O romance de Leonardo Valente impacta o leitor, primeiramente, pelo seu caráter experimental. É um livro que se assemelha a um jogo, e cuja configuração das páginas interessa à experiência de leitura tanto quanto as palavras que carrega. O que sabemos, quando D. começa a falar sobre si, é muito pouco. Sabemos apenas que D. é alguém, mas não sabemos se é homem, mulher, ou outro gênero (num exercício de estilo bastante provocador, D. aparece às vezes no feminino e, na mesma frase, no masculino). Em seguida, descobrimos que D. casou cinco vezes, com homens chamados Damião. Todo o resto da narrativa, portanto, se dá num encontro entre nós e D., como se estivéssemos em sua casa, e ele/ela, num longo monólogo, nos contasse a sua vida.
Mas claro que não é qualquer vida. D. não tem interesse de nos narrar o seu passado, organizá-lo em uma história linear, com início, meio e fim. Não é um velho que olha que para trás, como o nonagenário de Memórias de minhas putas tristes, de Gabriel García Marquez. D. está mais próxima/o das protagonistas dos romances de Clarice Lispector: alguém presa/o dentro de seus próprios pensamentos, avaliando, tal como alguém que faz um balanço, questões absolutamente complexas a partir de problemas aparentemente simples. Por exemplo, D. diz que uma de suas grandes mentiras é o seu penne ao funghi.
Mas é claro que suas questões, no âmago, não giram em torno de suas receitas culinárias, mas sim de sua “síndrome da imunodeficiência afetiva”. D., afinal, está recapitulando centralmente a sua história amorosa, com os cinco maridos e com o futuro sexto, com o qual sonha. Trata-se de um livro sustentado por uma metanarrativa que se autorreferencia constantemente: a narradora/o contesta a todo tempo a “gramática” típica da literatura. Em certa página, escreve “aqui deveria ter um título, mas não tem”; em outra, o texto é alinhado de forma centralizada, sob o seguinte título: “centralizo, pois é importante”.
O estilo usado por Leonardo Valente testa os limites entre as convenções dos gêneros para então extrapolá-los.
O estilo usado por Leonardo Valente, que testa os limites entre as convenções dos gêneros para então extrapolá-los, remete também à estética usada por Aline Bei – ambos os escritores trabalham suas obras nesta tensão entre a prosa e a poesia. Com tal recurso, conseguem instigar o leitor e tirá-lo da passividade. É preciso participar da Criogenia de D. para poder não apenas lê-lo, mas frui-lo. D. nos convida não simplesmente para conhecer a sua história (que, afinal, pode ser mentirosa), mas também para mergulhar, por meio dos sentidos, em seu universo próprio.
Em certo momento, D. escreve: “pensei em deixar este espaço debaixo da página em branco, mas preferi nele escrever que prefiro vê-lo em branco (…) A escrita é ação oposta ao vazio, não importa seu conteúdo”. Se viver é contar – como diria García Marquez em sua biografia -, D. está aí também para mostrar que contar é preencher os vazios para poder existir. Com suas provocações, Criogenia de D. nos instiga a investigar os nossos próprios buracos.
CRIOGENIA DE D. | Leonardo Valente
Editora: Mondrongo;
Tamanho: 126 págs.;
Lançamento: Maio, 2021.