As tretas atuais do universo literário (como, por exemplo, uma discussão entre o escritor Itamar Vieira Junior com a autora de uma crítica publicada na revista Quatro Cinco Um) têm inspirado uma profícua discussão sobre uma pergunta eterna: afinal, para que serve a literatura? E é provavelmente verdade que a maior parte dos escritores sonha em trazer ao mundo obras grandiosas, que sejam reconhecidas como definidoras do seu tempo.
Como leitora, sou uma grande defensora também do movimento contrário: os livros que retratam as miudezas da vida, naquilo que ela carrega de mais banal e até ridículo. O bem-humorado Manual das Decepções de uma Vida Comum, da escritora Ana Elisa Granziera, contemplou perfeitamente este meu desejo pelo pequeno, de focar em tudo que foge da grandiosidade que costumamos almejar quando resolvemos registrar nossas histórias.
O livro é composto de pequenas crônicas, poesias e cartuns que se misturam tendo em mente algo que os une: a descrição literária de coisas que deram errado. Mas nada de tão errado assim. Ana Elisa se refere em suas histórias a causos que quebraram a expectativa de, por fim, escaparmos da rotina morna que, de uma forma ou outra, todos nos sentimos inseridos.
Manual das Decepções de uma Vida Comum funciona como uma espécie de celebração da existência mundana.
Escreve a autora, já na introdução da obra: “o que são expectativas se não mentiras que contamos a nós mesmos? Sofrer uma decepção é ser enganado. Por outro, por uma situação, por nossas vozes internas que nos contam histórias do que não está lá. Quem está decepcionado está desiludido. Não é linda, na verdade, a quebra de uma ilusão?”
Uma vez que somos todos inevitavelmente seduzidos pela ilusão de uma vida mais importante do que a que temos, Manual das Decepções de uma Vida Comum funciona como uma espécie de celebração da existência mundana. Sem grandes pretensões, é claro.
Uma pequena comédia de enganos
As histórias narradas por Ana Elisa Granziera nos revelam uma escritora inventiva e com um humor inerente de quem cita como inspiração autores como Kurt Vonnegut e Luís Fernando Veríssimo. Há uma mistura de deboche e empatia pelos personagens que aparece com nitidez nesta obra.
Manual das Decepções de uma Vida Comum funciona como uma espécie de coleção de histórias frustradas. A mulher que vai trabalhar num restaurante chique e descobre que a cozinha está longe de ter a mágica que ela imaginava a partir de tantos filmes. O mistério da receita maluca do biscoito da avó, guardada a sete chaves pela família, mas que na verdade é apenas um erro. O professor que se decepciona com as respostas de uma aluna na prova, e se depara com um raciocínio maluco. O casal que se regozija com o relato sobre o encontro com uma amiga de faculdade do marido, que confessa uma paixão por ele.
Esta última crônica (intitulada “A Outra”) parece trazer um resumo justo do livro de Ana Elisa: a noção dura de que aquilo que importa para alguém é apenas motivo de chiste para os outros. Se, por um lado, isto é trágico, por outro, é também parte inerente da vida. No fim das contas, só há alguma vantagem nisso se conseguirmos rir dos fracassos.
A narrativa leve de Manual das Decepções de uma Vida Comum opera como um antídoto desejável em meio a tantas obras densas que, de uma forma ou outra, pretendem marcar o cânone literário. Por vezes – e, quiçá, na maior parte das vezes –, a vida (e até a literatura) é apenas ridícula.
MANUAL DAS DECEPÇÕES DE UMA VIDA COMUM | Ana Elisa Granziera
Editora: Mocho Edições;
Tamanho: 116 págs.;
Lançamento: 2022.
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