A ficção de gênero brasileira é o patinho feito da literatura nacional, não por sua falta de qualidade, mas por passar despercebida pelo público, que se desmancha pela ficção científica e fantasia internacional, mas não dá bola para o que produzimos aqui. É uma luta constante de escritores muito bem equipados para fazer frente a qualquer literatura de gênero produzida em qualquer lugar do mundo, mas lhes falta apoio dos leitores do país.
Mas como somos brasileiros e não desistimos nunca, a produção nacional de gênero vai de vento em popa, obrigado, e traz a nossas estantes obras que podiam dar o que falar, caso alguém falasse nelas.
Um exemplo é Sozinho no deserto extremo, de Luiz Bras, cujo rosto pode ser confundido com outro autor de relevo da literatura nacional, mas essa é outra história. De uma premissa que não é original – um mundo apocalíptico onde sobra apenas um humano –, Luiz arranca uma obra única que nos leva novamente à pergunta: Estamos preparados para sermos sozinhos?
Da misantropia à necessidade
Em Sozinho no deserto extremo, acompanhamos Davi, dono de uma agência de publicidade, morador de uma metrópole brasileira, casado e com filhos, quase o estereótipo de “uma pessoa de bem”, homem de sucesso que conseguiu chegar lá. Como Gregor Samsa, um dia ele desperta e se vê absolutamente sozinho: sua mulher, seus filhos, todos à sua volta desapareceram como por encanto. A única prova de que um dia existiram são os montinhos de roupa que foram deixados após seu desaparecimento. Foram abduzidos? Transformados em seres minúsculos, como naquela trapalhada de Emília no Sítio do Pica-Pau Amarelo? Não há explicação, nem tempo para ela. Davi sai do conforto de seu lar e parte em busca de… alguém?
Não. Por mais desesperadora que fosse a inexplicável situação, ele primeiro aproveita, pois nem gosta muito de pessoas. No entanto, em algum momento, seu ser social, esse que é incutido dentro da gente, por mais misantropos que sejamos, começa a se ressentir daquele novo mundo. O homem inteligente, culto, articulado, apesar de sua aparência física nada lisonjeira, sente falta da interação. Depois de aprontar muito pela cidade vazia, como queimar uma livraria, em uma das tantas referências que Luiz faz à literatura de gênero mundial, Davi entra em uma paranoia. Pois talvez ele não esteja tão sozinho assim.
Um telefone toca. A mulher de fala mansa faz perguntas a Davi. Ele se angustia, mas outra palavra, muito mais primitiva, grita dentro dele: sexo. Sozinho, sem as amarras sociais e o ser humano é carne e desejo, instinto puro. E não é diferente com Davi, esse homem sem qualidades, comum, mas ao mesmo tempo um dos escolhidos para habitar o mundo sem ninguém.
E também há Graça. Graça, a mulher que nem parece de mentira.
E outro homem. Que complica muito a vida de Davi. Inclusive no caso de um duelo para ver quem fica com a mulher do telefone.
E a menina-santa, que brinca com o vibrador no sex shop.
Foi isso que sobrou do mundo? Ninguém sabe.
Sozinho no deserto extremo é todo organizado como se não houvesse uma ordem. Não há uma sucessão de dias em que Davi escarafuncha sua solidão e vai afundando em um estado psicológico bastante complexo, mas ao contrário: os cento e um dias que acompanhamos do protagonista são misturados sem nenhum critério aparente, mas a sensação não é bem essa. Os capítulos são alinhavados de tal forma que a desorientação, obviamente proposital, só se faz presente nos primeiros capítulos, quando estamos nos acostumando com os flashes da jornada que Luiz nos mostra. E os dias se repetem, por que não? Quando se está sozinho no mundo os dias não significam mais nada, nem os meses, nem os anos. Então não há certeza se vimos 100 dias ou 10 anos da vida do solitário Davi.
Nós, leitores, não temos ideia de como o ato de ler é também uma transgressão, uma dor.
Referências mil
O livro de Luiz é extremamente cinematográfico. Não apenas pelas imagens que suscita e traz ao leitor, mas também em suas referências a filmes, mostrando um pouco a cultura de Davi e também como toda aquela cultura de nada valia em um mundo deserto, sem ninguém para compartilhar, dividir. Ao mesmo tempo, o novo mundo do protagonista é um sem hipocrisias impostas pela sociedade, sem máscaras, sem muletas. Aflora o primitivismo nas rachaduras da civilidade, pois também somos bicho, animal enjaulado em convenções, andando de um lado para o outro entre as grades do bom-mocismo. Sem a sociedade, sobra o cerne, o núcleo, aquilo que nos mantém em pé, que nos faz proteger quem amamos, atacar quem nos ameaça. E nesse novo mundo, referências são inúteis. Só o hoje é que vale.
Um trecho do livro que fala sobre a leitura me fez refletir como nós, leitores, não temos ideia de como o ato de ler é também uma transgressão, uma dor. Depois de ler três capítulos de Admirável mundo novo, Davi marca a página e não volta mais ao livro:
“Não abandonou a leitura porque não estava gostando, abandonou justamente porque estava adorando. Porém Davi aprendeu muito cedo que certos prazeres, neste mundo nem um pouco admirável, sempre provocam grande desconforto. O prazer da leitura é um deles. Dói demais escorregar suavemente para dentro da confortável zona da ficção, para longe da pressão da realidade externa. Os músculos relaxam. O medo arrefece.” (p. 102)
Entrar em Sozinho no deserto extremo não é uma experiência das mais tranquilas. Por mais que o mote, como disse antes, não seja novidade, ter essa perspectiva tão próxima da gente, acontecendo aqui mesmo, sob uma perspectiva de realidade e sobrevivência tupiniquim, muda totalmente o sabor da história.
Que tenhamos muito mais literatura brasileira de gênero povoando as livrarias, bibliotecas e a estante de casa, sendo lida, discutida e comentada. Pois os escritores estão fazendo sua parte.
SOZINHO NO DESERTO EXTREMO | Luiz Bras
Editora: Prumo;
Tamanho: 320 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2012.