Que o título não engane: por mais que o belo rosto de Kathryn Hahn na frente da divulgação de As Pequenas Coisas da Vida sugira uma história leve e acolhedora, a série da Star+ está mais próxima de uma bomba que cai sobre a cabeça de quem assiste. O que temos, ao invés disso, são 8 episódios sobre uma pessoa em uma espiral de autodestruição.
Clare, a personagem de Hahn, é uma mulher marcada pelo trágico. Aos 49 anos, ela vive uma crise no casamento e com a filha depois que emprestou dinheiro da família para seu irmão. Clare trabalha numa clínica geriátrica, mas está prestes a ser demitida depois que seus chefes descobrem que ela está dormindo lá, na mesma cama que os internos, depois que o marido a expulsou de casa.
Contudo, em meio a tanta tristeza e fracasso, há espaços eventuais para que o sublime emerja. E isto talvez se deva ao fato de que esta é uma adaptação do livro Pequenas delicadezas: Conselhos sobre o amor e a vida, de Cheryl Strayed – autora também da obra biográfica que deu luz ao sucesso cinematográfico Livre, de 2014, com Reese Whiterspoon (que também é produtora desta série).
Da mesma forma que na obra anterior, Pequenas Delicadezas explora a vida de Cheryl, que é marcada pela figura mítica do curador ferido – ou seja, alguém que, de tão golpeado pela vida, adquire uma sabedoria que serve para ajudar os outros.
Uma mulher em desconstrução
Na trama, Clare é uma mulher de 49 anos marcada por uma tragédia: a morte de sua mãe, Frances (Merritt Wever, de Nurse Jackie) quando ela tinha apenas 22 anos. Em sua memória, sua mãe é uma pessoa extremamente bondosa e que parecia nunca levar as ofensas dos filhos (como nas vezes em que Clare lhe cobrava coisas que eles não podiam ter, por serem pobres) para o lado pessoal.
A série explora a vida de Cheryl Strayed, que é marcada pela figura mítica do curador ferido – ou seja, alguém que, de tão golpeado pela vida, adquire uma sabedoria que serve para ajudar os outros.
Sua grande aspiração é a de se tornar uma romancista. Clare (encarnada nos flashbacks pela brilhante atriz Sarah Pidgeon) se torna a primeira pessoa da família a fazer faculdade. Seu talento é evidente, e ela inclusive consegue um contrato editorial para lançar um livro. Mas a tragédia que a acomete com a morte da mãe por um câncer faz com que todos os seus planos desmoronem – e, de alguma forma, por sua própria escolha.
Quase trinta anos depois, Clare está casada com Danny (Quentin Plair) e é mãe de Rae (Tanzyn Crawford). Mas ela simplesmente não consegue parar de destruir tudo o que toca, como se fosse uma Midas ao contrário. Sua carreira não decolou, seu emprego está prestes a acabar, seu marido não consegue a perdoar e sua filha parece odiar. Em certo momento, ela se pergunta como sua vida foi parar tão longe em relação àquilo que ela sonhou se tornar.
Mas algo começa a mudar quando um antigo amigo a procura e oferece a ela um trabalho voluntário, dando conselhos em uma coluna extremamente popular na internet chamada “Dear Sugar”. Mesmo que sua vida seja um lixo, é escrevendo como Sugar que Clare começa aos poucos a abrir espaço para que seu talento, que é a sua prosa empática e delicada, possa novamente florescer.
‘As Pequenas Coisas da Vida’: a força das atrizes
Extremamente tocante, As Pequenas Coisas da Vida adquire sua força a partir do texto de Cheryl Strayed (todos os episódios se encerram com a leitura das colunas de Sugar) e da performance de todos os atores. Em especial, há o potente elenco feminino: Kathryn Hahn é uma atriz inacreditavelmente boa. Assim como sua correspondente na juventude – Sarah Pidgeon consegue nos entregar uma Clare que expressa sua dor pungente de maneiras muito convincentes. Ambas estão absolutamente entregues ao papel.
Merritt Wever, como a mãe idealizada, consegue ir muito além do que seria um personagem insípido nas mãos de alguém sem o mesmo talento. Por fim, a jovem atriz australiana Tanzyn Crawford consegue completar com muita dignidade a tríade avó/ mãe/ neta, construindo a adolescente Rae como alguém que lida com os próprios conflitos para além do potencial desmoronamento de sua família.
A dinâmica entre elas (mesmo que algumas personagens nunca se encontrem) é explorada de maneira muito inspirada, deixando claro o quanto um trauma não elaborado pode seguir repercutindo na vida adulta de alguém. Isto se evidencia em um belíssimo episódio em que as versões adultas e adolescentes dos personagens se intercalam em uma mesma cena – de modo a nos dizer que, em situações à flor da pele, somos sempre a mesma criança machucada.
As Pequenas Coisas da Vida pode não ser uma série que vai deixar você alegre. Mas, com sorte, vai comovê-lo e fazê-lo entrar em contato com as suas próprias feridas.
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