Em certo dia, Antônio recebe uma ligação que quebra a rotina do seu dia. Seu pai, Raul, está com uma emergência médica e precisa da ajuda do filho. Ocorre que eles não se veem há quinze anos. Portanto, há algo a mais nessa ligação – ela é um convite para um resgate forçado de uma relação em um espaço de doze dias, até o falecimento do pai. O mote instigante de Doze Dias (Penalux, 2023), premiado romance do escritor Tiago Feijó, sugere que este seja um livro sobre a dor do luto. Até é – mas há algo mais aqui.
A jornada deste protagonista não é exatamente heroica; ao contrário, estará mais ligada a uma espécie de descida ao inferno onde ambos, pai e filho, terão que se confrontar não apenas com o que há entre eles (e segue escondido em um passado de ressentimento), mas também com o que fizeram de suas próprias vidas.
O livro venceu em 2021 o prêmio literário Manuel Teixeira Gomes, além de ter sido finalista do prêmio Leya no mesmo ano. Os louros se justificam após a leitura: a forma com que Tiago Feijó conduz essa história é simultaneamente poética e dura; chocante, mas empática.
Construída em terceira pessoa, a narrativa percorre caminhos inventivos, e soa como se estivesse estabelecendo um laço conosco, os leitores, que olhamos à distância a saga desses dois. O texto interpela o lado de “fora” do livro, apresentando recursos que regulam o tempo narrativo, como “não aceleremos os passos, não adiantemos os passos. Afinal, Antônio ainda dorme apagado no cansaço”.
Quase como se houvesse a famigerada quebra da quarta parede, estratégia bastante usada na TV. Mas quem se direciona para cá não é um personagem, e sim um narrador invisível que expõe os artifícios pelos quais toda história é contada. O recurso traz, inclusive, até certo humor e leveza para uma trama em que a tristeza, obviamente, transborda. Afinal, essa é a história dos últimos doze dias de um homem até sua derrocada.
Os últimos passos de um homem

Tiago Feijó tece a narrativa de Doze Dias de forma entrecortada, em um vai-e-vem temporal que nunca escapa do tempo fatídico anunciado no título. Mas esses dias são misturados: o dia um (a ligação do pai para o filho) até o dia doze (a morte de Raul) são misturados em capítulos que nos guiam às diferentes fases dessa reaproximação.
Pode-se dizer, também, que o romance carrega um certo discurso social sobre masculinidades, em especial ao que tange o papel do pai na criação dos filhos. Antônio, como milhares de pessoas no Brasil, cresceu com um pai meio ausente, e que foi embora quando se deu conta que estaria preso a uma rotina familiar que considerava monótona ou castradora.
Obviamente, essa busca por novas aventuras (característica, ao menos nessa cultura, mais atrelada aos homens que às mulheres) faz com que a responsabilidade do filho reste à mãe, Noemi – que, segundo Raul se dá conta, já ao fim da vida, é a única mulher que ele amou, dentre as tantas com quem se envolveu.
Pode-se dizer que o romance carrega um certo discurso social sobre masculinidades, em especial ao que tange ao papel do pai na criação dos filhos.
Quinze anos depois, o filho, Antônio, é “convidado” a visitar este universo solitário constituído pelo pai, que habita numa casa que parece miserável. A falta de afeto demonstrada pelo pai – que, na lembrança de Antônio, é homem um tanto rude, meio superficial e adepto a demonstrações violentas da masculinidade padrão, como quando dá um tiro na TV durante um jogo de futebol – cria um paradoxo com o carinho que ele tem com as plantas e com o amor que demonstra por Alice, a filha que teve após a separação.
A escritura de Tiago Feijó comove ao trazer as minúcias desse encontro forçado, em que raiva e amor caminham juntos. O pai é falho, mas ainda assim é o pai. Escreve: “o filho estaca uma vez mais diante da janela, mas desta vez não vislumbra nem céu azul, nem praça ensolarada, nem pernas afogueadas de passos, porque o que Antônio almeja é vislumbrar uma antiga lembrança que o carregue para longe do pai em declínio e o ponha diante do pai vigoroso”.
Mas, curiosamente, Raul pede que o filho o ajude, ao invés da filha, que se recusa a visitá-lo no hospital. Esta trama complexa das relações familiares tecidas de forma torta pelo homem doente está entre os grandes trunfos da obra.
Ainda que saibamos desde o início que esta é uma história dos últimos dias de um sujeito agonizante – e que agora presta contas de uma vida inteira de excessos e falta de cuidado consigo mesmo -, ela é (e talvez por isso mesmo) uma história de redenção, no melhor sentido possível da palavra.
Trata-se da última chance de que o pai peça perdão ao filho e receba a graça de ser perdoado por tê-lo abandonado. Não é tarefa pequena para nenhum dos dois. Mas não deixa de ser uma chance para fazer as pazes com o ciclo da vida, em toda sua infinita beleza.
Como escreve Tiago Feijó, em palavras que restam na memória do leitor: “para ele, não é outra coisa senão assombrosamente extraordinário que estejam ali diante dele, um no colo do outro, o princípio e o fim, o germe da vida e o verme da morte, a criança ainda rasa de humanidade e o homem já farto de ser homem, as duas pontas da vida como que atadas num ciclo inevitável e maravilhoso”. Doze Dias é um belíssimo livro.
DOZE DIAS | Tiago Feijó
Editora: Penalux;
Tamanho: 158 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2023.
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