A premissa da série The Power (baseada no best-seller O Poder, de Naomi Alderman), da Prime Video, é simplesmente fantástica: ela imagina um futuro em que as mulheres desenvolveram um órgão capaz de dar choques – tal qual uma enguia elétrica. Localizado em um ponto próximo à clavícula, a “trama” aparece quase como um resultado da seleção natural: de tanto sermos violentadas e oprimidas, nosso corpo simplesmente se aprimorou e criou uma forma de se defender.
A história, portanto, vai investigar as consequências dessa “evolução”. Se tivermos modos de nos equivaler às agressões masculinas (pense no fascínio do homem pelas armas, por exemplo), como a sociedade reagiria? The Power, que é uma verdadeira superprodução, se propõe a abordar estes desdobramentos a partir de personagens específicos, que representam ângulos dessa mudança: o político, a resistência civil, o religioso.
Para fazer isso, The Power é flerta com a megalomania e se desdobra em diferentes continentes. Talvez se possa dizer que o foco principal está na família Cleary-Lopez, centralizada em Margot (Toni Collette), a prefeita de Seattle, que enfrenta seus próprios desafios de gestão por ser mulher e mãe. Ela é casada com um médico (John Leguizamo) e tem três filhos. Quando a trama elétrica – chamada também de EOD, abreviação de electric organ discharge – começa a ser identificada em várias partes do mundo, ela resolve que chegou o momento de levantar a bandeira em prol do direito das mulheres sobre seu próprio corpo.
Ainda nos Estados Unidos, há Allie (Halle Bush), uma menina negra que transita entre diversos lares adotivos, sendo jogada de casa em casa. Ela é tão traumatizada que parou de falar – o que facilita com que seja abusada pelo pai adotivo. Até que ela resolve matá-lo usando esse novo poder que se manifesta em seu corpo, sendo guiada por uma voz interna (narrada por Adina Porter, famosa por American Horror Story) que ela crê ser deus.
Toda a descrição acima deixa claro que The Power visa, sem sombra de dúvida, contar uma história eletrizante (com o perdão do trocadilho).
Do outro lado do continente, há mais três núcleos. Em Londres, Roxy (Ria Zmitrowicz) é a filha bastarda de um gânsgter que tenta ser reconhecida dentro do seu negócio, enquanto coisas horríveis ocorrem em sua vida. Na Nigéria, um jornalista chamado Tunde Ojo (Toheeb Jimoh, de Ted Lasso) se aproxima cada vez mais de pequenos grupos de mulheres que manifestam o novo poder, no intuito de fazer uma cobertura para a CNN. Por fim, no leste europeu, Tatiana (Zrinka Cvitešić) é a esposa infeliz de um ditador que aos poucos vê o governo se preparar para dizimar as mulheres tidas como rebeldes.
Por mais que esta seja uma história tensa e grandiosa, os ares que se manifestam frente a estas mudanças são, sobretudo, de alegria e otimismo – como se, por fim, mulheres espalhadas no mundo todo estivessem prestes a fazer um levante para se defender contra um grande inimigo, representado não exatamente pelos homens em si, mas pelo patriarcado.
‘The Power’: uma faísca pouco reluzente
Toda a descrição acima deixa claro que The Power visa, sem sombra de dúvida, contar uma história eletrizante (com o perdão do trocadilho). Consegue fazer isso? Eu diria que até a página 2. É quase como aquela vela de aniversário que a gente tenta acender várias e várias vezes, mas cuja chama demora pra pegar – se é que uma hora pega.
Parte dessa frustração talvez se deva pelo tom meio infantil que cerca a história – roteirizada por três mulheres: Sarah Quintrell, Raelle Tucker e a própria Naomi Alderman – dando uma sensação de exploração rasa de clichês associados ao feminismo em sua forma mais rastaquera.
Um exemplo é o fato de como a opressão sofrida pela prefeita Margot Cleary-Lopez descamba para a questão de seu visual, com ela sempre reclamando de ter que estar apresentável, bonita e sorridente, mesmo que sua família esteja ruindo. Isto tudo dá origem a uma cena que beira o risível, quando ela, rebelde, opta por usar um coturno ao invés de sapatos de salto alto que machucam seus pés.
Momentos como esse (e vários outros) não tornam The Power ruim, mas óbvio, quase como se funcionasse como uma “introdução ao feminismo” a meninas adolescentes – sendo que é bastante provável que elas já tenham adentrado em discussões mais avançadas e poderiam pular esta parte.
Mas há, obviamente, vários pontos luminosos em The Power, dos quais eu destacaria especialmente a discussão de fundo sobre o direito ao próprio corpo – numa clara alegoria à questão do direito ao aborto. Neste futuro distópico, o que se vê, quando uma mudança profunda acontece no corpo, é a tentativa incessante por parte dos políticos (representados especialmente na figura do senador Daniel Dandon, papel de Josh Charles) de cercear o acesso das mulheres ao que desejam fazer com ele. Uma mulher livre para usar o seu corpo é uma mulher perigosa – e cabe aos homens assegurar que elas não tenham esse direito.
Certamente esta é uma discussão poderosa que, mesmo que eventualmente fique perdida em meio às muitas histórias, torna The Power uma boa série de ficção científica que merece ser conferida. Por fim, uma curiosidade: a atriz chilena Daniela Veja (do incrível Uma Mulher Fantástica) faz uma ponta como uma freira.
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